Pintura de Ans Markus
Era apenas uma mulher. Não que o sexo fizesse diferença nesse momento. Era, na verdade uma alma aflita. E aflições podem acometer qualquer ser, independente do sexo. Mas o fato que lhe ocorreu em particular, certamente que não. Só uma mulher o sofreria.
Ela vagava perdida. Em sua vida não encontrava um sentido, uma razão para estar no mundo. Uns a chamavam de louca, outros a ignoravam, poucos a compreendiam. Não, decididamente ela não era um ser comum. Desses que nasce e encontra seu lugar nesse mundo de meu deus. Ela era diferente, desde que nasceu, pode-se acreditar.
Foi concebida num ato de violência extrema, quando sua mãe era apenas uma menina de 13 anos de idade e ainda brincava com bonecas. Certamente não foi um ato de amor, mas brutal e de extrema crueldade. Mesmo assim, deu-se prosseguimento a gravidez, com todas as dificuldades que uma menina poderia ter ao carregar em seu ventre imaturo um filho. Essa decisão foi tomada pelos seus pais, que eram evangélicos e não admitiam a possibilidade de um aborto.
Aquela menina franzina e imatura, de apenas treze anos passou a carregar o fardo, o peso de um ser que dentro dela crescia e se desenvolvia a olhos vistos. Sentia-se um ser estranho, fora do contexto. Enquanto as outras meninas brincavam com suas bonecas, corriam e saltavam, viviam sua meninice, ela sentia dentro de si aquela sementinha que germinava. Na rua, na escola, as pessoas faziam questão de olhar aquele ventre intumescido, sem qualquer disfarce ou piedade, o que a deixava constrangida. Esse olhar era, geralmente, um olhar de crítica, como se um crime fora cometido e a culpada fosse a pobre menina. Sem duvida um crime fora cometido, mas que culpa tivera ela?
Os meses se passaram, entre azias, vômitos e enjôos matutinos. Seu ventre crescia, crescia, que parecia que a qualquer momento poderia explodir, pensava ela. Tinha dificuldade para sentar, se acomodar na cama para dormir e até para se levantar. Foram meses de tormento. Ao findar os sete meses, o martírio para ela acabou. A criança nasceu prematura.
Ela não esperava que as dores do parto pudessem ser ainda maiores do que imaginava e ouvira falar.
Enfim, veio ao mundo um novo ser, que não se pode dizer que tenha sido propriamente desejado, devido as circunstâncias. Nasceu uma menina. Aquela coisinha miudinha e frágil, que poderia ser comparada à uma de suas bonecas, mas que não era, nem de longe. Mexia perninhas e braços. Chorava, sem que ela soubesse o porquê. A pobre menina não imaginava que talvez o momento mais difícil estivesse ainda por vir. Vez que nascida, a criança necessitaria de cuidados aos quais ela não estava preparada a dar. Mas ser mãe é um eterno aprendizado...
Assim foram se passando os dias, com sua mãe a ajudar-lhe nos cuidados com o bebê. Mas a menina via o mundo lá fora. Ela queria trepar nas árvores, ela queria brincar de escorrega, ela queria ser criança e isso lhe foi tomado. Ela era mãe.
E a criança foi crescendo, como é de se esperar em qualquer criança. Os cuidados higiênicos, alimentares, seguiram um padrão de normalidade. Esse não era o problema. A dificuldade era outra. Ela não conseguia nutrir por essa criança, sua filha, o afeto que seria esperado. Sentia-se distante e apenas cumpria suas obrigações, que envolvia os cuidados necessários para que a menina crescesse com saúde.
Como amar aquela criança que não fora concebida num ato de amor? Como amar aquele ser que não desejara? Como amar a filha que havia entrado em sua vida num momento em que não estava preparada para tê-la?
Ela era o que se podia chamar de mãe técnica, que provia a criança em suas necessidades básicas: banho, trocar fraldas, alimentar, levar ao médico para as visitas periódicas, medicar nas doenças. Só que sabemos que ser mãe é bem mais que isso. Ser mãe é se doar, é tocar seu filho, acarinhar, fazê-lo sentir-se amado.
Isso, para ela era impossível. Não conseguia desenvolver esse sentimento e se mantinha sempre a distância.
A menina crescia só, aos trancos e barrancos. Muito só. Aprendeu a se isolar como defesa. Criou um mundo só seu, onde não precisava de ninguém, onde ninguém poderia machucá-la, mas também onde ninguém poderia amá-la. Tinha nos livros sua companhia. Ela era a princesa, a fada, a bruxa, a rainha, qualquer personagem que quisesse ser. Ela podia ser tudo nos contos de fada que lia. Só que nesse tudo que podia ser no mundo do ilusório, seu mundo real se perdeu. Sua própria identidade, seu amor próprio, sua reais desejos.
- Quem sou eu? - ela se perguntava, aflita.
Longo seria o caminho da descoberta de seu verdadeiro eu. Longo e árduo. Será que ela teria condições de percorrê-lo?
Ianê Mello
2 comentários:
Ela terá sempre muitas hipóteses de conseguir o que busca, minha @miga!
Beijinho
Sim, querida. A esperança não pode morrer. Tem-se que acreditar na possibilidade da transformação.
Saudades. Bj grande.
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