CONTOS



SOMOS  SÓIS





Te beijo a boca sôfrega de paixão. Sorvo sua língua de hortelã. Bebo sua saliva até a última gota. Cálice de vinho tinto, doce e suave. Você está em mim como fogo em brasa, que arde e não queima. Seu cheiro a penetrar em minhas narinas, almiscarado. Seus olhos semafóricos me dizem siga e eu me embebo em sua seiva. Seus cabelos de azeviche cheirando a pêssego nos quais pouso minha cabeça e aspiro o perfume. Na curva entre pescoço e ombro me entrego menina. Corpo contra corpo, côncavo e convexo, encaixados como peças de um quebra-cabeça. Não, não se perca de mim por entre a multidão aflita. Não me deixe perder-me de você. Nossas mãos são elos de uma corrente poderosa. Almas interligadas. Vejo através de seus olhos escuros. Me enxergo. Você me vê em mim. Banalizar o amor é fácil para quem não ama. Tratores passarão para derrubar nossos sonhos. A vida nos desvia dos caminhos certos. Tantas placas, tantas sinalizações, tantos caminhos. E por quantos já passei. E quantos julguei ter amado. Quantos amores mastiguei com minha boca ávida extraindo deles todo o sumo para depois cuspí-los ao chão como um chiclete que perdeu o sabor. O engano de se ter quem se deseja e a tristeza quando se vê que não se tem ou não se quer mais. Mas você...ah, você! Você é para mim um encaixe perfeito. Me olha e vê em mim o que sou quando estou contigo. Não desvia o olhar. Coragem. É preciso coragem para a entrega. Não, não quero que seja mais um cigarro que fumo até o filtro e depois amasso no cinzeiro já lotado. São tantos amores perdidos. Mas como preservar esse sentimento nesse mundo louco, em constante surto. Nesse caos urbano, nessa infinita pobreza, entre corpos pelo chão, lixo, esgotos, poluição, maldade, solidão humana. Mas somos nós, somos nós, sós. Mas somos outros, somos outros quando estamos entre eles, entre todos. Somos nós, a sós, dois sóis. Mas lá fora é escuro, a negra fumaça que esconde os vultos sem direção, sem rumo, os pobres de espírito, os pobres de amor, os pobres...Pobre de quem nunca amou. A inveja do amor que não se teve é veneno. Os olhares sugam esse amor que é nosso, invejosos, desejosos de destruí-lo, de fazê-lo em pedaços como são suas despedaçadas vidas. Rondam pelas ruas, pelos becos e avenidas, zumbis de almas, perdidos nos descaminhos. Sugadores de energia, vampiros. Querem de nós a vida pois não sabem o que fazer, aonde ir, perdidos que estão no mundo dos humanos. Somos tudo e somos nada. Destinos a cumprir sem saber porque. O que nos puxa para baixo e o que nos eleva, nessa alternância, nessa inconstância de altos e baixos sem fim. Quando você se vai, metade de mim vai contigo. Fica só a outra metade a te procurar, tateando no escuro. Nessa escuridão me perco entre pesadelos assombrosos e personagens antigos. Vidas que passaram e bem não me recordo. O que sou, aonde estou? Esse corpo é meu corpo? Falta-me o espelho de seus olhos para que eu me veja. Falta o aconchego de seus braços para que eu me encontre. Faltamos nós. Nós juntos, sós, somos sóis.

*


Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online -O Beijo, por Vítor Silva.






NUMA MANHÃ DE INVERNO







Ela caminhava entre campos floridos e mal se destacava das demais espécies de flor. Margaridas, dálias, marias-sem-vergonha formavam um tapete colorido onde pousava seu olhar. Embevecido e atento procurava não perder de vista sua flor mais bela. Seus cabelos loiros reluziam ao sol com seu raios brilhantes. Ela virava a cabeça em sua direção e sorria, aquele seu sorriso encantador. Correndo feito criança entre as flores comemorava a chegada da primavera, a sua estação preferida. Ele, mero espectador, apreciava de longe esse lindo espetáculo. O amor pulsava em seu coração, lembrando-lhe que estava vivo. Sim, ela era responsável por essa gostosa sensação. O amor fizera-o renascer. Ele, que era só solidão e dor. Ele que já havia desistido de tudo.


Foi numa manhã de inverno. O frio era intenso e o vento cortante fazia o corpo estremecer. Ele estava sentado a mesa do café, observando o movimento das pessoas ao seu redor. Lá dentro a temperatura estava agradável e convidativa. Não demorou muito e estava lotado de gente. De repente a porta se abriu e ela entrou. Seus cabelos dourados e revoltos, em cachos pendiam sobre seu rosto avermelhado do frio. Chamou de imediato a sua atenção, não só por ser bonita, mas pela sua presença marcante e diferenciada. Ela olhava ao redor a procura de um lugar para sentar. Percebendo sua dificuldade, ele num ímpeto se levantou e acenou, apontando que a seu lado havia uma cadeira disponível. Ela devolveu-lhe um límpido e belo sorriso e veio em sua direção.


- Obrigada. Já estava desistindo.

- Imagina. sente-se. - ele disse, puxando a cadeira para ela.

- Acho que todos tiveram a mesma idéia, não?

- Também, com esse frio lá fora, nada melhor.

- É verdade. Meu nome é Cintia e o seu?

- Guilherme. É um prazer conhecê-la.- ele disse esticando sua mão para cumprimentá-la.


Quando apertou a mão de Cintia sentiu um calor envolver seu corpo. Podia sentir seu coração descompassado, batendo forte em seu peito. Manteve aquela mão fria entre as suas, não conseguindo desprender seus olhos dos olhos dela, de um profundo azul celeste. Ela permitiu esse contato, não fazendo esforço para livrar-se. Parecia estar compartilhando da mesma emoção daquele momento. Não sabe dizer quanto tempo ficaram assim. Perde-se a noção do tempo nesses momentos. Mas foi o suficiente para perceber que aquela mulher chegara para mudar sua vida. Quando se deu conta estava sorrindo, coisa que há muito ele não fazia. Ela, em retribuição, devolveu-lhe seu sorriso encantador.

Finalmente soltaram-se as mãos e ele foi o primeiro a falar:


- Cintia, realmente estou muito feliz em conhecê-la.

- Eu também estou, Guilherme.

- Por favor, peça o que quiser.- disse, chamando o garçom.


Dali para frente as palavras não foram mais necessárias. Seus olhares, em profunda conexão, diziam tudo .  Sentiam-se próximos um do outro. Mas tão próximos que tinham a sensação de já terem se conhecido antes, como se agora  estivessem apenas num reconhecimento recíproco. Quando terminaram ele pediu a conta. Buscou as mãos dela sobre a mesa e segurou-as firmemente entre as suas. Não queria se separar dela por nada nesse mundo. Falou, então, sem medo de uma recusa. Ele que era tão tímido e inseguro:


- Fica comigo, Cintia?

- Não posso pensar em outra coisa, Guilherme. - ela responde num sorriso.


Ele se levanta e a ajuda a colocar seu casaco e echarpe. Dirigem-se para a saída. O frio lá fora já não parece tão intenso. Ele levanta seu queixo e beija-lhe suavemente a boca rosada. Envolve sua cintura, puxando-a para si. Ela recosta docemente a cabeça em seu ombro. Gestos tão íntimos e tão naturais para eles. Caminham assim, abraçados, sem pressa, pela rua molhada de chuva. Cada momento é para eles único e se eternizará no tempo.

Ianê Mello




DIAS IGUAIS







Numa praça em Genebra um homem idoso parecia não se incomodar com a chuva que caía molhando suas vestes. Sentado num dos bancos assim permaneceu, cobrindo apenas sua cabeça com o jornal que ali achara, com seu olhar parado, encoberto pelas grossas lentes de seus velhos óculos e suas mãos apoiadas em sua velha e usada bengala. Estava velho e cansado, imerso em seus pensamentos. Da vida já não tirava proveito e nem graça. Parecia que nada o faria dali levantar-se para procurar um abrigo. Mas por que esse total desleixo com sua saúde? Afinal, poderia pegar uma gripe forte, o que nessa idade não deixa de ser temerário. Mas ele sequer pensava nisso. O instinto de auto - proteção já não fazia mais parte de suas qualidades. Ele se tornara alheio a si mesmo, a sua vida, bem como a tudo ao seu redor. Seus olhos cansados e de visão pouca já não registravam as belezas da vida. Não focava, na verdade, seu olhar em mais nada. Ele apenas vivia, dia após dia, porque não tinha outro jeito, ainda não chegara a sua hora de partir. Quando acordava cedo pela manhã, porque assim se acostumara, a primeira coisa que pensava era: mais um dia... Se levantava da cama sem vontade, com seu andar arrastado, de quem carregava consigo todo o peso de um passado que não deixava para trás. E como deixá-lo para trás se não via a sua frente futuro algum. A única coisa que lhe restava era lembrar-se dos dias que vivera, pois  isso que agora tinha não julgava ser vida.  Ele resolve por fim, depois de muito tempo, levantar-se para ir para casa. Para no sinal vermelho e espera que abra para atravessar a rua de grande movimento. Sente, então, um toque em seu braço. Vira-se e se depara com um jovem rapaz com um largo sorriso no rosto.


- Posso lhe ajudar a atravessar?
- Por que perde tempo com um velho como eu, não tem nada melhor a fazer? - pergunta intrigado com tamanha gentileza.


O jovem olha para ele com serenidade e responde com a voz firme:


- Nada no momento é mais importante do que ajudá-lo a atravessar .


Ele, ainda curioso, pergunta:


- Por quê?
- Porque um dia quando chegar na sua idade gostaria que alguém fizesse o mesmo por mim. Vamos? - respondeu  segurando mais firme em seu braço.
- Obrigada, meu filho. - responde o velho com um sorriso.




Ianê Mello


*


Crédito de imagem: foto de Cartier Bresson

PROMESSAS DE OUTONO






Eles eram um casal. Um casal normal como qualquer outro casal vindo de um longo relacionamento. Já estavam juntos há vinte anos. Alguns desses felizes, outros não. Estavam acostumados um com o outro e não sei se isso é bom ou ruim, na verdade. Nada no comportamento do outro surpreendia. Era tudo previsível demais. Essa previsibilidade tornava sua convivência estável e, por vezes, monótona. A monotonia pode ocasionar para alguns um desejo por novidades, por algo que abale as estruturas. Isso pode gerar um problema. Ele sabia de cor todas as linhas de seu rosto amado. Sua testa larga, seus profundos olhos castanhos, seu nariz afilado, sua boca fina e rósea, seus cabelos castanhos emoldurando seu rosto como uma bela moldura num quadro. Bela mulher! Madura já em seus traços, afinal, tinha cinquenta e dois anos. Madura e bela. Seu corpo bem torneado, cintura fina, seios pequenos e largos quadris, seguidos de longas e bem feitas pernas. Corpo desejável e belo, embora maduro. Ele a queria muito. Tinha certeza de seu amor por ela. Nessa mulher encontrara a paz para os seus dias. Mas era tanta paz que ás vezes incomodava. por que será que a paz incomoda? Não é, afinal, a ela que almejamos. contradições do ser humano. Quando a encontramos, dá uma coceirinha estranha para que algo abale essa paz conquistada. Vá lá saber o por que! Assim ele se sentia. Mas a amava acima de tudo. Não poderia sequer supor perdê-la. Isso o impedia de ter uma aventura qualquer que pudesse abalar seu relacionamento, mas seu coração, ao mesmo tempo, pedia para viver essa aventura. Ele lutava consigo mesmo, enquanto olhava para ela, em seu semblante plácido, tranquilo, seu remanso, seu rio de águas claras e serenas. Mergulhava, então, em suas águas profundas e bebia o mais que podia dessa fonte geradora de amor. Nesses momentos se esquecia de suas inquietações e desejos. Perdia-se nela e se encontrava novamente. Ela se abria inteira, entregue, pronta, fruto maduro. Ele sorvia seu néctar inebriado. Respirava seu cheiro de mulher. Beijava sua boca e nela entrelaçavam sua linguas, numa valsa cadenciada. Sentia o gosto já conhecido, mas não menos amado dessa mulher que é sua, sem surpresas. Enterrava a cabeça entre seus longos cabelos cheirando a jasmim e se sentia num jardim paradisíaco. Tudo era conhecido, mas belo. Para quê buscar noutros corpos uma satisfação momentânea, para aplacar seu desejo de algo novo? Arriscar-se a perder a mulher que para ele era tudo, era a sua vida. Tolice, devia estar ficando louco. A idade o estava fazendo querer coisas absurdas. "Estou com medo de envelhecer, é isso!" Ele pensa e sorri para si mesmo aliviado. Olha sua mulher, a mulher por ele amada, dentro de seus olhos e diz, com toda a sua emoção:

- Eu te amo!



É outono. As folhas caem das árvores, amarelecidas, bailando no ar. Bela dança outonal. Eles sorriem um para o outro e se abraçam fortemente. Estão juntos e em paz. Essa é a verdadeira felicidade.


Ianê Mello


*
Crédito de imagem: Foto montagem de Mihai Criste


RUÍDOS NA MADRUGADA







RUÍDOS NA MADRUGADA



Já havia perdido a conta do número de vezes que rolara na cama, de lá para cá, de cá para lá, como um pedaço de carne a rolar na farinha de rosca, antes de ser frito. Que agonia! A madrugada avançava lenta, minuto a minuto nos ponteiros do relógio que em sua cabeça se fazia ouvir: tic-tac, tic-tac, tic-tac ... O barulho persistente e contínuo enlouquecia. Nem queria olhar as horas para não desesperar ainda mais. Aquele relógio perturbador contava sua insônia em seus ponteiros implacáveis, fazendo-a lembrar-se que ainda estava acordada. Para piorar a situação um maldito pernilongo cismara de compor uma sinfonia em seu ouvido: zzzzzzz... ou qualquer coisa parecida. Só fazia ela lembrar outro desagradável barulho que ouvia quando se sentava na cadeira do dentista, prenúncio de dor iminente: ZZZZZZZZZZZZ... fazia o motor do aparelho usado para obturações. E lá vinha ele, o dentista, com aquele aparelhinho maldito em seu dente já dolorido, causando aquela dor fina que se reza para acabar logo e nos deixar em paz. "Sai pernilongo maldito, vou acender a luz e te caçar até estalá-lo contra a parede deixando aquela mancha de sangue, todo o sangue que você chupou durante essa noite. Deixe-me  em paz, quero dormir. Parem todos os barulhos, estou enlouquecendo!" Lá fora algo como um gato mia, deve estar no cio ou talvez seja a vizinha gemendo numa noite quente de amor com seu marido, ou a solteirona com seu amante, ou qualquer outra mulher em gozos de prazer. E ela aqui, na mão, isso não é justo. Se ao menos ela pudesse gozar bem alto e abafar  todos esses barulhos em sua cabeça: relógio, mosquito, vizinha... "Querem me tirar do sério." Ouve o barulho da moto na rua. Um pássaro da noite ensaia o canto, talvez em seu ninho. "Ora, se isso é hora de ensaiar! "Vai dormir, passarinho. Até você de que tanto gosto nesse complô contra mim?" Ela ouve algo feito um uivo. Será um lobo? Lobo aqui, na cidade. "Estou mesmo enlouquecendo." Apura melhor os ouvidos, parece ser alguém doente gemendo. Agora parecia que todos os barulhos estavam dentro de seu quarto, ou melhor, dentro da sua cabeça. Relógio, mosquito, vizinha, gato, moto, passarinho, lobo, doente...
" Parem com esse barulho ensurdecedor! "- ela grita furiosa.
Tão alto é o seu grito que várias luzes se acendem e as cabecinhas da vizinhança se fazem perceber nas janelas abertas, espiando para ver o que acontece no meio da madrugada. Que grito horroroso havia sido aquele! Ela sorri. Conseguiu acordar boa parte dos vizinhos que dormia tranquilamente em suas casas. Agora, ela já pode dormir em paz. Ajeita um travesseiro embaixo de sua cabeça e o outro em cima. Se aconchega bem gostoso nas cobertas e adormece, finalmente, como um anjo. 



Créditos de imagem: Pintura de Jacek Yerka.


O ANJO CAÍDO





Muriel era uma linda mulher. Protótipo de beleza pelos homens cobiçado.
Pele alva, cabelos loiros e um corpo escultural.
Desde nascida se  sabia que seria pelos homens desejada pelos homens.
De origem pobre e humilde, tudo lhe faltava:  pão, calor e carinho.
E assim ela crescia entre os trancos e barrancos de uma vida vazia e sem sentido.
Seu pai, ao observar a beldade em que sua filha se tornara, pensou:
"Bem que podia me valer de tamanha formosura em nosso proveito, para conseguir algum dinheiro.  Nesse aperto que temos passado, mal tendo o que comer e onde morar."
Para ele parecia prática a solução, sem em nenhum momento cogitar o bem estar de sua única filha muher.
Tinha uns contatos na cidade  e para lá se dirigiu, sem sequer consultar Muriel.
Lá funcionava uma casa noturna "A Casa do Sol Nascente", que embora a beleza do nome em suas paredes nenhuma beleza abrigava.
Era um prostíbulo que atendia aos fregueses mais abastados do local e seus filhos quase impúberes lá eram levados para serem iniciados na arte do sexo.
Conversou com a cafetina, Daguimar, que era a  responsável pelo local e lhe falou sobre sua bela filha.
Ela ficou entusiasmada, pois todas as mulheres que lá haviam já meio que passavam da idade e todas muito rodadas, por isso o movimento andava fraco. Carne nova era sempre um bom negócio, um incentivo para atrair mais fregueses. Logo se interessou e perguntou ao pai:
- A moça é virgem?
- Sim, claro - responde o homem meio nervoso.
Daguimar quis então conhecer tal beldade e marcaram o encontro para a noite seguinte.
Chegando em casa, a filha já dormia. Nem imaginava o que lhe aguardava para a noite seguinte.
O homem foi trocar-se e deitou na cama , em que sua mulher já estava, dormindo pesadamente.
Na dia seguinte, sem dizer o porque, levou sua filha e cidade e comprou-lhe um vestido. Não era grande coisa, mas dentro do que podia pagar e dos trapos velhos que ela tinha, estava bom demais. Ela, inocentemente, sorriu para seu pai em agradecimento.
Estava bonita, pois em  seu corpo longilíneo tudo lhe caía bem. Pernas longas, busto pequeno e um rosto angelical. Longos cabelos loiros lhe cobriam a face corada. Grandes e sonhadores olhos azuis que brilhavam como contas e um sorriso de menina completavam sua beleza.
À noite, após o jantar, ele pediu a sua filha que pusesse o vestido novo que lhe dera e pintasse os lábios com batom . Ela não entendeu o porquê, mas como sempre, fez o que ele pediu sem nada perguntar. Sofria de uma timidez típica de moça do interior, acostumada a ficar presa dentro de casa sem conviver com o mundo lá fora.  Quando retornou a sala, pai e mãe abriram a boca de admiração. Como ela estava linda!
O homem deu uma desculpa qualquer para a mulher e saiu com a filha porta afora. Era assim, nunca dava satisfações a ninguém. Afinal, não era ele o responsável pelo sustento da casa.
Assim que saíram, Muriel olhou para o céu. Como estava lindo cheio de estrelas! Encantou-se com a lua cheia que tudo iluminava a sua volta. Estava feliz em sair de casa, coisa que não era acostumada a fazer, embora não compreendesse o motivo.
A cidade era pequena. Foram caminhando devagar, ela a segurar no braço do pai, enquanto os homens que passavem se viravam para contemplar sua beleza.
Chegaram finalmente à Casa do Sol Nascente.  Assim que entraram, pontualmente no horário marcado, estava a cafetina Daguimar já impaciente a espera, próxima ao balcão de entrada. Olhou para aquela moça, linda como um anjo e seus olhos brilharam de cobiça. Estava feita, iria tirar muito dinheiro com aquela belezura.
"Que maravilha, dinheiro em caixa! Excelente mercadoria!", ela pensou, em sua ganância.
Muriel nada entendia. Olhava para os lados e via mulheres em pequenos trajes, pintadas como bonecas, sassaricando de um lado para o outro e alguns homens sentados nos sofás ou em cadeiras, com um copo de bebida nas mãos. Alguns acompanahdos de uma das moças, outros sós. Uma música cobria o ambiente iluminado à meia-luz. Não entendia o que fazia ali. Porque seu pai a tinha trazido num lugar como aquele.
Enquanto ela observava, também era observada por diversos pares de olhos cheios de cobiça. Sentia-se mal com tantos olhares a pousar sobre ela.
Seu pai e Dagmar fizeram os acertos necessários e a moça ali já passaria a primeira noite, sendo iniciada por companheiras de ofício mais antigas. As roupas seriam dadas pelo estabelecimento, bem como a alimentação, claro!
- Venha cá, menina! - chamou Daguimar.
- Sim, senhora, pois não.
- Me chame de Daguimar. Vou lhe apresentar as meninas. Rose e Josefa, levem a moça e expliquem o serviço. Vejam, ela ainda é virgem. Precisam ensinar tudo.  Josefa, você acompanha ela esse noite.
Elas olhavam para Muriel com inveja. Sua leveza, sua frescura de moça, sua beleza angelical faziam-nas sentir-se trastes ultrapassados. Ela iria lhes tirar toda freguesia. Que cliente iria querê-las com "aquelazinha" ali. Fresca como uma flor em botão, resvalando perfume pelo recindo enfumaçado.
Mas, que fazer, tinham de passar-lhe as manhas do negócio. Ensinar-lhe tudo que sabiam, ou quase tudo, esconderiam um trunfo na manga. No mais, era quastão de tempo. Logo, logo ela perderia esse viço e formosura, porque a vida ali não era nada fácil!
Então, se tornaria, pouco a pouco, apenas mais uma delas...
Muriel estava confusa, em sua cabeça passavam mil coisas. Ela não conhecia as maldades do mundo, mas sentia que aquele lugar não era boa coisa. Ficou assustada. Tentou abrir a boca para falar com seu pai, como antes nunca visera, mas foi levada pelos braços pela meninas da casa.
O pai a olhava afastando-se, sem renorso algum no coração. Ela virou-se uma vez para traz a sua procura. Ela não estava mais lá.
Sua sorte fora lançada.


Ianê Mello


*


Crédito de imagem - Pintura de Pino Daene




UM HOMEM COMUM







Amassava a massa com o vigor de suas mãos calejadas e fortes, acostumadas ao trabalho duro. Mãos de homem, como sua mãe lhe dizia. O suor a escorrer-lhe sobre a fronte morena, ardendo-lhe os olhos, quando uma gota dentro deles caía. Pele morena castigada pelo sol do dia a dia. Músculos fortes e bem  torneados  se faziam perceber por debaixo da camisa suada que grudava em seu corpo como uma segunda pele. Era um belo homem! Um pouco maltratado pelo trabalho pesado de sol a sol, o que lhe dava a aparência de mais idade, mas que conservava belos traços e olhos negros como a noite. Passou as costas da mão na testa retirando o excesso do suor que gotejava. Já eram quase seis da tarde e o sol ainda queimava a pele. Era verão e fazia muito calor. Poderia estar a essa hora num escritório com ar condicionado, trajando um belo terno, com a secretária a servir-lhe uma xícara de café. Mas será que isso seria vida para ele? Não negava as vezes refletir sobre essas questões, como é normal a qualquer ser humano. Mas não encontrava a resposta e por fim desistia de pensar, afinal, a necessidade lhe impusera esse destino, não tivera outra escolha. Para que pensar então, se nada mudaria?
Era um homem inteligente, que tivera um certo estudo, mas perdera o pai cedo e teve que assumir as despesas da casa, não podendo levá-lo adiante. Assim, largou os estudos incompletos e procurou por trabalho, pois tinha que sustentar a mãe e sua irmã mais nova. Moravam numa cidade do interior em condições já bem difíceis, mesmo com seu pai ainda vivo. Como seu pai trabalhava em construções, o caminho mais fácil  foi seguir seus passos, substituindo-o de início numa construção já em andamento na qual ele trabalhava até a ocasião de sua morte. E assim continuou dali para adiante. Tornara-se um bom operário e era constantemente requisitado. Ainda foi a sua sorte, pois era o seu ganha pão e de sua família. Dava para o sustento, nada além disso. Mas sentia orgulho de poder fazer isso pelos seus. Não deixaria que passassem fome ou não tivessem um teto para morar. As obras necessárias na modesta casa, ele mesmo fazia e assim a mantinha em condições habitáveis.
Perdido em seus pensamentos nem percebeu o tempo passar. Já escurecia.
"Bem, por hoje é só"- pensou enquanto via seus companheiros um a um se preparando para ir embora. Mais um dia que se foi ou seria menos um dia? Bom, dá na mesma.- sorriu consigo."
Foi para casa caminhando. Já anoitecia e uma brisa suave percorria-lhe a pele suada, trazendo-lhe um alívio refrescante. Iria para a sua casa e seria recebido com alegria pela sua mãe e irmã, com um bom prato de comida a sua espera, depois de um bom banho gelado. Depois, uma cama limpa para descansar seu corpo fatigado. Do que poderia enfim reclamar?  Tinha muito mais que muitos, não? Tinha uma casa, comida, roupas limpas e não estava só.
Avistou a luz da casa acesa e viu a sombra de sua mãe a porta. Sorriu satisfeito.
O pouco pode ser muito quando se dá valor ao que se tem, ele sabia bem disso.


Ianê Mello

A DIFÍCIL HORA DO ADEUS








- Oi, você já vai?
- Acho melhor, agora que tudo está resolvido.
- Pode levar os livros de Fernando Pessoa, se quiser.
- Sei que você também gosta deles. Pode ficar.
- Você vai ficar bem?
- Sim, claro, dá-se um jeito...
- Será que poderia ser diferente?
- Não sei. Só sabemos que não foi e agora...
- Para onde você vai?
- Eu me viro. Não se preocupe.
- Está levando tudo que precisa?
- "O que mais preciso tenho que deixar", ele pensou.
- "Gostaria que você não fosse embora. Por quê tem que doer tanto?", pensa ela, por sua vez.




    E o silêncio se fez entre ambos. Por não quererem revelar os verdadeiros sentimentos que ainda pulsam e teimam em machucar.  Mas nenhum dos  dois tem coragem de falar o que realmente sentem. Decidiram pela separação e sentem que tem que levá-la adiante a qualquer custo. Racionalizam que será melhor para os dois porque não estava dando certo. Ah, mas tiveram momentos tão lindos! Estes ficarão na lembrança. Atormentando a dor da saudade, o frio da ausência.  O que fazer quando o amor ainda existe, mas não há mais entendimento, não há  mais possibilidade de convivência?


- Bem, você quer ficar coma cópia da chave, caso tenha esquecido algo?
- Acho melhor não. Se der por falta, lhe aviso e venho pegar.
- Desejo que você seja feliz.
- É o que estamos tentando, não? Sermos felizes.
- Sim, claro...
- Então, já vou.
- Abro a porta pra você.




Na porta, se entreolham mais uma vez. Ele olha a sala a sua volta. O lar que viveram todos esses anos e sente a alma apertada. Precisa ir, senão não conterá a lágrima que teima em se formar no cantinho de seus olhos.
( Quem disse que homem não chora?) Ela pensa se há como contê-lo. Como voltarem atrás, mas decide deixá-lo partir. A dor é tão grande que não permite ser expressa.


- Vá com Deus!
- Fique em paz...


E ela fecha rapidamente a porta com as lágrimas rolando sobre sua face, enquanto ele entra no elevador e sente uma faca cravada em seu peito. Uma dor tão lancinante que jamais poderia imaginar e, indo  contra todos os preconceitos, finalmente chora...




Ianê Mello


*


Crédito de imagem: Pintura de Edward Munch




A PROCURA DE SI


                               





Era apenas uma mulher. Não que o sexo fizesse diferença nesse momento. Era, na verdade uma alma aflita. E aflições podem acometer  qualquer ser, independente do sexo. Mas o fato que lhe ocorreu em particular, certamente que não. Só uma mulher o sofreria. 
Ela vagava perdida. Em sua vida não encontrava um sentido, uma razão para estar no mundo. Uns a chamavam de louca, outros a ignoravam, poucos a compreendiam. Não, decididamente ela não era um ser comum. Desses que nasce e encontra seu lugar nesse mundo de meu deus. Ela era diferente, desde que nasceu, pode-se acreditar. 
Foi concebida num ato de violência extrema, quando sua mãe era apenas uma menina de 13 anos de idade e ainda brincava com bonecas. Certamente não foi um ato de amor, mas brutal e de extrema crueldade. Mesmo assim, deu-se prosseguimento a gravidez, com todas as dificuldades que uma menina poderia ter ao carregar em seu ventre imaturo um filho. Essa decisão foi tomada pelos seus pais, que eram evangélicos e não admitiam a possibilidade de um aborto. 
Aquela menina franzina e imatura, de apenas treze anos passou a carregar o fardo, o peso de um ser que dentro dela crescia e  se desenvolvia a olhos vistos. Sentia-se um ser estranho, fora do contexto. Enquanto as outras meninas brincavam com suas bonecas, corriam e saltavam, viviam sua meninice, ela sentia dentro de si aquela sementinha que germinava. Na rua, na escola, as pessoas faziam questão de olhar aquele ventre intumescido, sem qualquer disfarce ou piedade, o que a deixava constrangida. Esse olhar era, geralmente,  um olhar de crítica, como se um crime fora cometido e a culpada fosse a pobre menina. Sem duvida um crime fora cometido, mas que culpa tivera ela?
Os meses se passaram, entre azias, vômitos e enjôos matutinos. Seu ventre crescia, crescia, que parecia que a qualquer momento poderia explodir, pensava ela. Tinha dificuldade para sentar, se acomodar na cama para dormir e até para se levantar. Foram meses de tormento. Ao findar os sete meses, o martírio para ela acabou. A criança nasceu prematura. 
Ela não esperava que as dores do parto pudessem ser ainda maiores  do que imaginava e ouvira falar. 
Enfim, veio ao mundo um novo ser, que não se pode dizer que tenha sido propriamente desejado, devido as circunstâncias. Nasceu uma menina. Aquela coisinha miudinha e frágil, que poderia ser comparada à uma de suas bonecas, mas que não era, nem de longe. Mexia perninhas e braços. Chorava, sem que ela soubesse o porquê. A pobre menina não imaginava que talvez o momento mais difícil estivesse ainda por vir. Vez que nascida, a criança necessitaria de cuidados aos quais ela não estava preparada a dar. Mas ser mãe é um eterno aprendizado...
Assim foram  se passando os dias, com sua mãe a ajudar-lhe nos cuidados com o bebê. Mas a menina via o mundo lá fora. Ela queria trepar nas árvores, ela queria brincar de escorrega, ela queria ser criança e isso lhe foi tomado. Ela era mãe.
E a criança foi crescendo, como é de se esperar em qualquer criança. Os cuidados higiênicos, alimentares, seguiram um padrão de normalidade. Esse não era o problema. A dificuldade era outra.  Ela não conseguia nutrir por essa criança, sua filha, o afeto que seria esperado. Sentia-se distante e apenas cumpria suas obrigações, que envolvia os cuidados necessários para que a menina crescesse com saúde. 
Como amar aquela criança que não fora concebida num ato de amor? Como amar aquele ser que não desejara? Como amar a filha que havia entrado em sua vida num momento em que não estava preparada para tê-la?
Ela era o que se podia chamar de mãe técnica, que provia a criança em suas necessidades básicas: banho, trocar fraldas, alimentar, levar ao médico para as visitas periódicas, medicar nas doenças. Só que sabemos que ser mãe é bem mais que isso. Ser mãe é se doar, é tocar seu filho, acarinhar, fazê-lo sentir-se amado.
Isso, para ela era impossível. Não conseguia desenvolver esse sentimento e se mantinha sempre a distância.
A menina crescia só, aos trancos e barrancos. Muito só. Aprendeu a se isolar como defesa. Criou um mundo só seu, onde não precisava de ninguém, onde ninguém poderia machucá-la, mas também onde ninguém poderia amá-la. Tinha nos livros sua companhia. Ela era a princesa, a fada, a bruxa, a rainha, qualquer personagem que quisesse ser. Ela podia ser tudo nos contos de fada que lia. Só que nesse tudo que podia ser no mundo do ilusório, seu mundo real se perdeu. Sua própria identidade, seu amor próprio, sua reais desejos. 


- Quem sou eu? - ela se perguntava, aflita.


Longo seria o caminho da descoberta de seu verdadeiro eu. Longo e árduo. Será que ela teria condições de percorrê-lo?


Ianê Mello


*


Créditos de imagem: Pintura de Ans Markus

NUM DIA CHUVOSO  




Chovia... Era uma chuva densa, de pingos grossos. Daquelas chuvas de verão que nos pegam de surpresa, sem nenhum guarda-chuva na bolsa. A roupa rapidamente se encharca e provoca na pele um leve arrepio. Pessoas correm de lá para cá, num alvoroço. A chuva costuma provocar esse tipo de reação. Parece que as pessoas podem se liquefazer quando expostas a água. Mas eu não sou diferente não. Procuro também por um abrigo, um lugar qualquer para me proteger. Encontro um barzinho aconchegante e cheirando a café e bolinhos recém saídos do forno.  É tudo que preciso agora... Está bem cheio, será que todos tiveram a mesma idéia que eu? Procuro uma mesinha discreta, pois não gosto de ficar muito exposta. Prefiro as mesas de canto, onde tudo vejo, mas não me torno o foco. Peço a garçonete o cardápio. Hum, quantas delícia tentadoras! Por que tudo que é gostoso engorda? Coisas de mulher. Sempre preocupada com a silueta. Ah, esquece, hoje é um dia incomum. Relaxa... Olho o cardápio com olhos de desejo, indecisa. Acabo optando por waffles com mel acompanhado de uma boa xícara de chocolate quente e cremoso. Que delícia! Enquanto aguardo meu pedido, olho ao redor, como boa observadora que sou. Não gosto de ser observada, mas gosto de observar. No café existem as pessoas mais diversas. Acompanhadas e sós, como eu. Em cada rosto uma expressão, em cada olhar uma visão, em cada gesto um pouco de cada um. As pessoas se diferem por tantos detalhes... Um gesticular excessivo de mãos ( as extrovertidas demais) ou até um não saber onde colocá-las (as excessivamente tímidas). Um olhar evasivo ou invasivo. Aquele olhar que olha e não vê, que parece passar através de você e aquele outro que parece te dissecar alma. Ui... desses eu fujo! Vozes contidas, comedidas, baixas e calmas e outras explosivas, altas e espalhafatosas, como se quisessem todas as atenções para si. Pessoas... cada qual com suas características tão peculiares, tão únicas.  Detalhes de um ser que se desvenda perante o mundo, em seus meandros, em suas vestes, em sua postura, em seus gestos, em seu olhar, em seu falar (ou calar). Cada ser humano é um mistério a ser desvendado. Cada ser humano é um universo em si. E é justamente isso que o torna tão instigante e rico.


Ianê Mello


 ENCONTRO CASUAL






- Olá, como está?
- Eu vou bem e você?
- Tudo bem, na medida do possível.
- Soube que se casou.
- Verdade. Ia te convidar, mas...
- Não precisa se desculpar, por favor.
- É, tem razão.
- Você sabe que eu não poderia ir mesmo.
- (...)
- Bem e o casamento... está feliz?
- Acho que sim... Sim. Estou feliz.
- Que bom!
- Quer tomar um café ou algo assim comigo? Tem um barzinho logo ali.
- Não há problema para você? Digo...
- Claro que não, vamos.

Não esperava vê-lo assim, no meio da rua. Cara a cara comigo. Nem deu tempo de abaixar os olhos e passar direto. Seus olhos negros já me fitavam fixamente. Ele sempre foi assim. Nunca fugiu de um olhar.  Aqueles olhos negros...negros como a noite. Misteriosos como um poço escuro. Devia saber que mergulhar nesses olhos seria a pior coisa que eu poderia ter feito, mas eles eram  tão sedutores; profundos demais para serem ignorados. Me fisgaram. Me prenderam e neles me perdi.
Agora estou aqui, de frente para ele, nesse bar, amistosamente. Tudo parecendo tão casual, tão normal de acontecer quando duas pessoas que se conhecem se encontram. Tanto tempo havia se passado e para mim parecia que havia sido ontem que aquele homem saiu da minha vida.

Chega o garçon.

- O que você quer beber? - ele me pergunta.
- Um capuccino vai bem. - respondo olhando em seus olhos.
- Algum acompanhamento? - gentilmente pergunta.
- Um strudel de macã. - digo sorrindo.
- Para mim o mesmo, obrigada - diz dirigindo-se ao garçon.

Pedimos o mesmo que costumávamos pedir quando íamos à um café. Interessante. Será que ele se lembrou?

- Capuccino ainda é mossa bebida predileta, pelo que vejo - disse com um ar de intimidade.
- E strudel também ainda é o acompanhamento - respondi com um sorriso sem graça.
- Pois é... há preferências que não se alteram, nem com o tempo.... - flou reticente, fitando meus olhos.

Não suportei e baixei a vista. Era demais... O que ele queria. Me magoar... de novo. Estava casado. Fez sua opção e agora estava querendo me seduzir?
Seus olhos se voltavam para os meus que não mais sabiam aonde pousar. Comecei a mecher nas mãos, nos cabelos, a olhar para os lados... mal sinal, estava me sentindo desconfortável. Eram tantas meias palavras, olhares fugidios, mão perdidas no vazio. Podia quase ouvir os batimentos do meu coração. Será que ele percebia minha angústia? Será que sentia que eu ainda o amava?

- Mas você parece bem... está muito bonita. Aliás, sempre foi.

 Preferi me calar...

- Desculpe, acho que estou te deixando tensa. Pensei que pudéssemos conversar um pouco e tudo ficaria bem
- Não se preocupe. Não há nada na vida que não se possa superar.
- Talvez... não sei bem...

Aquilo já estava me irritando. Ele não tinha esse direito e eu tinha que deixar isso claro. Iria acabar com esse joguinho idiota agora mesmo. Mas com classe. Ele entenderia.

- Olha, foi bom termos nos reencontrado. Saber  que está bem e satisfeito com sua nova vida. Agora, me desculpe, mas tenho um compromisso e preciso ir.
- Mas já, tem certeza?
- Perfeitamente. Por favor, peça a conta.

Contra a firmeza de minhas palavras, ele não teve saída. Chamou o garçom. Caminhamos até a calçada. Trocamos um beijo no rosto. Ele me fitoudaquele jeito... será que um  dia esqueceria aqueles olhos?

- Obrigada pelo lanche.
- Obrigada pela companhia. Seja feliz!

Fui andando com passos apressados pela calçada, me distanciando cada vez mais da quele homeme e sentindo seus olhos cravados em minhas costas, queimando minha pele.
Como poderei esquecer esses olhos?


Ianê Mello

*

Créditos de imagem: Cartier Bresson

2 comentários:

Joe_Brazuca disse...

ah !, Ianê...Você realmente é uma "fera" na escrita, domina como ninguém as sua letrinhas todas...

Não li tudo, porque precisa-se deleite para "saborear" toda essa verve...

Aos poucos e com esmero, como se faz com "marron gracê" !...rs

vamos voltando, e voltando...

bj

Ianê Mello disse...

Poxa, amigo, vindo de você é um elogio e tanto. Me deixou super emocionada.Sua opinião é super importante para mim, de verdade.
Obrigada pela atenção e carinho dedicada aos meus escritos.
Volte sempre que será um grande prazer para mim recebê-lo.

Bjs.