sexta-feira, 30 de setembro de 2011

INVASIVA






respinga no papel
virgem
a tinta escura
deturpa o branco
desvirgina
palavra punhal
se espalha
invasora
sangra em versos
penetrante
intensa
exorciza
a dor
liberta
...


Ianê Mello

LUZ DO SOL




Ela veio do sol
seu andar cadenciado
corpo perfeito
sem vestes
luz brilhante
em meus olhos
sua feminina
imagem
na minha retina
intacta
pássaros
a voejar
a seguem
seus passos
de veludo azul
pés que são asas.


Ianê Mello



Crédito da imagem: Pintura de Arturo Caltabiano "Dichiarazione d'amore".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O FIM DA FESTA






Pra que a festa se a tarde cai
e com ela o vento abranda
como suave brisa
Os ruídos já se perdem no poente
onde o sol tímido se esconde
Os tambores já não rufam como outrora
Os brilhos e glamores se vão
e cada qual consigo mesmo,
na solidão do vazio,
encontra o próprio rosto
As máscaras caem ao chão
e por debaixo delas apenas um rosto se mostra...
O único rosto real
E o que fica no fim da festa
é o mais puro cansaço
de um sentimento vão


Ianê  Mello

MENINA MATREIRA





(para minha amiga Giselle Serejo)



Menina-mulher de rara beleza
um coração repleto de amor
na alma um único desejo
ser amada
Amiga jamais esquecida
cultivada a distância
dos meus dias já faz parte
com suas palavras de carinho
e demonstrações de afeto
De amar não se envergonha 
declarando em alta voz
o que o coração sente
A ponte da amizade
que entre nós se fez
ameniza a ausência
na distância que nos separa


Ianê Mello

terça-feira, 27 de setembro de 2011

AMOR MADURO



O amor não tem idade
sentimento nobre e puro
traz consigo a saudade
a esperança no futuro.

O amor traz  o desejo
de viver a cada dia
a vida num lampejo
a entrega sem covardia

Amor  no tempo amadurecido
seguro em seu querer
guarda no peito escondido
vontade de permanecer


Ianê Mello

domingo, 25 de setembro de 2011

FOME DE AMOR




Para Salvador Dali


A fome que sinto
não é de comida
É de amor...
Que me rói
o estômago
me corrói as vísceras
Nada preenche
nada basta
nessa falta de tudo
que me arrasta
ao fundo
mais profundo
de mim mesma
E essa ânsia
que me queima o estômago
me consome as entranhas
me rasga
me dilacera
Coração e ventre
Ferida aberta
Aberta ferida


Ianê Mello


Crédito de Imagem: Pintura de Salvador Dali

IMAGENS DO INCONSCIENTE





Para Salvador Dali


Imagens simbólicas
vindas do inconsciente
Nos revelam mistérios
do arquétipo coletivo
Imagens universais
guardadas em nossa mente
Nos remetem aos primórdios,
aos nossos ancestrais,
reflexos que somos
das inúmeras passagens
que por essa terra fizemos
Em nossa alma abrigamos
esse misto de imagens
do que um dia vivemos
Fomos ricos, fomos pobres
Fomos plebeus , fomos nobres
E em cada encarnação
um pouco mais aprendemos
da vida, grande lição
e ao amor nos rendemos


Ianê Mello


Crédito de imagem: Pintura de Salvador Dali

sábado, 24 de setembro de 2011

PRISIONEIRO DE SI MESMO



O avesso
sem retoques
sem reparos
sem filtros
sem proteções
é o mais puro real
que a coragem
de ser inteira
pode permitir
O animal enjaulado
o ser aprisionado
as garras recolhidas
se esconde por medo
na capa que o reveste
e o protege dos olhos alheios
da curiosidade
da maldade
do terror
dos olhos alheios
Mas como ser livre
na prisão de si mesmo?
Como ser livre
sendo apenas parte
e não inteiro,
mostrando apenas
o padronizado
o aceito socialmente,
enquanto seu lado escuro
se perde cada vez mais
no breu da inexistência?


Ianê Mello




sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Van Googh


NUMA MANHÃ DE INVERNO




Ela caminhava entre campos floridos e mal se destacava das demais espécies de flor. Margaridas, dálias, marias-sem-vergonha formavam um tapete colorido onde pousava seu olhar. Embevecido e atento procurava não perder de vista sua flor mais bela. Seus cabelos loiros reluziam ao sol com seu raios brilhantes. Ela virava a cabeça em sua direção e sorria, aquele seu sorriso encantador. Correndo feito criança entre as flores comemorava a chegada da primavera, a sua estação preferida. Ele, mero espectador, apreciava de longe esse lindo espetáculo. O amor pulsava em seu coração, lembrando-lhe que estava vivo. Sim, ela era responsável por essa gostosa sensação. O amor fizera-o renascer. Ele, que era só solidão e dor. Ele que já havia desistido de tudo.

Foi numa manhã de inverno. O frio era intenso e o vento cortante fazia o corpo estremecer. Ele estava sentado a mesa do café, observando o movimento das pessoas ao seu redor. Lá dentro a temperatura estava agradável e convidativa. Não demorou muito e estava lotado de gente. De repente a porta se abriu e ela entrou. Seus cabelos dourados e revoltos, em cachos pendiam sobre seu rosto avermelhado do frio. Chamou de imediato a sua atenção, não só por ser bonita, mas pela sua presença marcante e diferenciada. Ela olhava ao redor a procura de um lugar para sentar. Percebendo sua dificuldade, ele num ímpeto se levantou e acenou, apontando que a seu lado havia uma cadeira disponível. Ela devolveu-lhe um límpido e belo sorriso e veio em sua direção.

- Obrigada. Já estava desistindo.
- Imagina. sente-se. - ele disse, puxando a cadeira para ela.
- Acho que todos tiveram a mesma idéia, não?
- Também, com esse frio lá fora, nada melhor.
- É verdade. Meu nome é Cintia e o seu?
- Guilherme. É um prazer conhecê-la.- ele disse esticando sua mão para cumprimentá-la.

Quando apertou a mão de Cintia sentiu um calor envolver seu corpo. Podia sentir seu coração descompassado, batendo forte em seu peito. Manteve aquela mão fria entre as suas, não conseguindo desprender seus olhos dos olhos dela, de um profundo azul celeste. Ela permitiu esse contato, não fazendo esforço para livrar-se. Parecia estar compartilhando da mesma emoção daquele momento. Não sabe dizer quanto tempo ficaram assim. Perde-se a noção do tempo nesses momentos. Mas foi o suficiente para perceber que aquela mulher chegara para mudar sua vida. Quando se deu conta estava sorrindo, coisa que há muito ele não fazia. Ela, em retribuição, devolveu-lhe seu sorriso encantador.
Finalmente soltaram-se as mãos e ele foi o primeiro a falar:

- Cintia, realmente estou muito feliz em conhecê-la.
- Eu também estou, Guilherme.
- Por favor, peça o que quiser.- disse, chamando o garçom.

Dali para frente as palavras não foram mais necessárias. Seus olhares, em profunda conexão, diziam tudo .  Sentiam-se próximos um do outro. Mas tão próximos que tinham a sensação de já terem se conhecido antes, como se agora  estivessem apenas num reconhecimento recíproco. Quando terminaram ele pediu a conta. Buscou as mãos dela sobre a mesa e segurou-as firmemente entre as suas. Não queria se separar dela por nada nesse mundo. Falou, então, sem medo de uma recusa. Ele que era tão tímido e inseguro:

- Fica comigo, Cintia?
- Não posso pensar em outra coisa, Guilherme. - ela responde num sorriso.

Ele se levanta e a ajuda a colocar seu casaco e echarpe. Dirigem-se para a saída. O frio lá fora já não parece tão intenso. Ele levanta seu queixo e beija-lhe suavemente a boca rosada. Envolve sua cintura, puxando-a para si. Ela recosta docemente a cabeça em seu ombro. Gestos tão íntimos e tão naturais para eles. Caminham assim, abraçados, sem pressa, pela rua molhada de chuva. Cada momento é para eles único e se eternizará no tempo.


Ianê Mello

terça-feira, 20 de setembro de 2011

DIAS IGUAIS




Numa praça em Genebra um homem idoso parecia não se incomodar com a chuva que caía molhando suas vestes. Sentado num dos bancos assim permaneceu, cobrindo apenas sua cabeça com o jornal que ali achara, com seu olhar parado, encoberto pelas grossas lentes de seus velhos óculos e suas mãos apoiadas em sua velha e usada bengala. Estava velho e cansado, imerso em seus pensamentos. Da vida já não tirava proveito e nem graça. Parecia que nada o faria dali levantar-se para procurar um abrigo. Mas por que esse total desleixo com sua saúde? Afinal, poderia pegar uma gripe forte, o que nessa idade não deixa de ser temerário. Mas ele sequer pensava nisso. O instinto de auto - proteção já não fazia mais parte de suas qualidades. Ele se tornara alheio a si mesmo, a sua vida, bem como a tudo ao seu redor. Seus olhos cansados e de visão pouca já não registravam as belezas da vida. Não focava, na verdade, seu olhar em mais nada. Ele apenas vivia, dia após dia, porque não tinha outro jeito, ainda não chegara a sua hora de partir. Quando acordava cedo pela manhã, porque assim se acostumara, a primeira coisa que pensava era: mais um dia... Se levantava da cama sem vontade, com seu andar arrastado, de quem carregava consigo todo o peso de um passado que não deixava para trás. E como deixá-lo para trás se não via a sua frente futuro algum. A única coisa que lhe restava era lembrar-se dos dias que vivera, pois  isso que agora tinha não julgava ser vida.  Ele resolve por fim, depois de muito tempo, levantar-se para ir para casa. Para no sinal vermelho e espera que abra para atravessar a rua de grande movimento. Sente, então, um toque em seu braço. Vira-se e se depara com um jovem rapaz com um largo sorriso no rosto.

- Posso lhe ajudar a atravessar?
- Por que perde tempo com um velho como eu, não tem nada melhor a fazer? - pergunta intrigado com tamanha gentileza.

O jovem olha para ele com serenidade e responde com a voz firme:

- Nada no momento é mais importante do que ajudá-lo a atravessar .

Ele, ainda curioso, pergunta:

- Por quê?
- Porque um dia quando chegar na sua idade gostaria que alguém fizesse o mesmo por mim. Vamos? - respondeu  segurando mais firme em seu braço.
- Obrigada, meu filho. - responde o velho com um sorriso.



Ianê Mello


Crédito de imagem: foto de Cartier Bresson

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

PROMESSAS DE OUTONO





Eles eram um casal. Um casal normal como qualquer outro casal vindo de um longo relacionamento. Já estavam juntos há  vinte anos. Alguns desses felizes, outros não. Estavam acostumados um com o outro e não sei se isso é bom ou ruim, na verdade. Nada no comportamento do outro surpreendia. Era tudo previsível demais. Essa previsibilidade tornava sua convivência estável e, por vezes, monótona. A monotonia pode ocasionar para alguns um desejo por novidades, por algo que abale as estruturas. Isso pode gerar um problema. Ele sabia de cor todas as linhas de seu rosto amado. Sua testa larga, seus profundos olhos castanhos, seu nariz afilado, sua boca fina e rósea, seus cabelos castanhos emoldurando seu rosto como uma bela moldura num quadro. Bela mulher! Madura já em seus traços, afinal, tinha cinquenta e dois anos. Madura e bela. Seu corpo bem torneado, cintura fina, seios pequenos e largos quadris, seguidos de longas e bem feitas pernas. Corpo desejável e belo, embora maduro. Ele a queria muito. Tinha certeza de seu amor por ela. Nessa mulher encontrara a paz para os seus dias. Mas era tanta paz que às vezes incomodava. Por que será que a paz incomoda? Não é, afinal, a ela que almejamos? Contradições do ser humano. Quando a encontramos, dá uma coceirinha estranha para que algo abale essa paz conquistada. Vá lá saber o porquê! Assim ele se sentia. Mas a amava acima de tudo. Não poderia sequer supor perdê-la. Isso o impedia de ter uma aventura qualquer que pudesse abalar seu relacionamento, mas seu coração, ao mesmo tempo, pedia para viver essa aventura. Ele lutava consigo mesmo, enquanto olhava para ela, em seu semblante plácido, tranquilo, seu remanso, seu rio de águas claras e serenas. Mergulhava, então, em suas águas profundas e bebia o mais que podia dessa fonte geradora de amor. Nesses momentos esquecia de suas inquietações e desejos. Se perdia nela e se encontrava novamente. Ela se abria inteira, entregue, pronta: fruto maduro. Ele sorvia seu néctar , inebriado. Respirava seu cheiro de mulher. Beijava sua boca e nela entrelaçavam sua línguas, numa valsa cadenciada. Sentia o gosto já conhecido, mas não menos amado dessa mulher que é sua, sem surpresas. Enterrava a cabeça entre seus longos cabelos cheirando a jasmin e se sentia num jardim paradisíaco. Tudo era conhecido, mas belo. Para quê buscar noutros corpos uma satisfação momentânea, para aplacar seu desejo de algo novo? Arriscar-se a perder a mulher que para ele era tudo, que era a sua vida. Tolice, devia estar ficando louco. A idade o estava fazendo querer coisas absurdas. "Estou com medo de envelhecer, é isso!" Ele pensa e sorri para si mesmo aliviado. Olha sua mulher, a mulher por ele amada, dentro de seus olhos e diz, com toda a sua emoção:

- Eu te amo!

É outono. As folhas caem das árvores, amarelecidas, bailando no ar. Bela dança outonal. Eles sorriem um para o outro e se abraçam fortemente. Estão juntos e em paz. Essa é a verdadeira felicidade.


Ianê Mello


*Crédito de imagem: Foto montagem de Mihai Criste

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

RUÍDOS NA MADRUGADA





Já havia perdido a conta do número de vezes que rolara na cama, de lá para cá, de cá para lá, como um pedaço que carne a rolar na farinha de rosca, antes de ser frito. Que agonia! A madrugada avançava lenta, minuto a minuto nos ponteiros do relógio que em sua cabeça se fazia ouvir: tic-tac, tic-tac, tic-tac ... O barulho persistente e contínuo e enlouquecia. Nem queria olhar as horas para não desesperar ainda mais. Aquele relógio perturbador contava sua insônia em seus ponteiros implacáveis, fazendo-a lembrar-se que ainda estava acordada. Para piorar a situação um maldito pernilongo cismara de compor uma sinfonia em seu ouvido: zzzzzzz... ou qualquer coisa parecida. Só fazia ela lembrar outro desagradável barulho que ouvia quando se sentava na cadeira do dentista, prenúncio de dor iminente: ZZZZZZZZZZZZ... fazia o motor do aparelho usado para obturações. E lá vinha ele com tudo em seu dente já dolorido causando aquela dor fina que se reza para acabar logo e nos deixar em paz. "Sai, pernilongo maldito, vou acender a luz e te caçar até estalá-lo contra a parede deixando aquela mancha de sangue, todo o sangue que você chupou durante essa noite. Me deixem em paz, quero dormir. Parem todos os barulhos, estou enloquecendo!"
Lá fora algo como um gato mia, deve estar no cio ou talvez seja a vizinha gemendo numa noite quente de amor com seu marido ou a solteirona com seu amante ou qualquer outra mulher em gozos de prazer. E ela aqui, na mão, isso não é justo. Se ao menos ela pudesse gozar bem alto e abafar  todos esses barulhos em sua cabeça: relógio, mosquito, vizinha... "querem me tirar do sério." Ouve o barulho da moto na rua. Um passaro da noite ensaia o canto, talvez em seu ninho. "Ora, se isso é hora de ensaiar! "Vai dormir, passarinho. Até você de que tanto gosto nesse complô contra mim?" Ela ouve algo feito um uivo. Será um lobo? Lobo aqui, na cidade. "Estou mesmo enlouquecendo." Apura melhor os ouvidos, parece ser alguém doente gemendo. Agora parecia que todos os barulhos estavam dentro de seu quarto, ou melhor, dentro da sua cabeça. Relógio, mosquito, vizinha, gato, moto, passarinho, lobo, doente...

- Parem com esse barulho ensurdecedor! - ela grita furiosa.

Tão alto é o seu grito que várias luzes se acendem e as cabecinhas da vizinhança se faz perceber nas janelas abertas espiando para ver o que acontece no meio da madrugada. Que grito horroroso havia sido aquele! Ela sorri. Conseguiu acordar boa parte dos vizihos que dormia tranquilamente em suas casas. Agora, ela já pode dormir em paz. Ajeita um travesseiro embaixo de sua cabeça e o outro em cima. Se aconchega bem gostoso nas cobertas e adormece, finalmente, como um anjo. 


Ianê Mello


Créditos de imagem: Pintura de Jacek Yerka.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

UM HOMEM COMUM





Amassava a massa com o vigor de suas mãos calejadas e fortes, acostumadas ao trabalho duro. Mãos de homem, como sua mãe lhe dizia. O suor a escorrer-lhe sobre a fronte morena, ardendo-lhe os olhos, quando uma gota dentro deles caía. Pele morena castigada pelo sol do dia a dia. Músculos fortes e bem  torneados  se faziam perceber por debaixo da camisa suada que grudava em seu corpo como uma segunda pele. Era um belo homem! Um pouco maltratado pelo trabalho pesado de sol a sol, o que lhe dava a aparência de mais idade, mas que conservava belos traços e olhos negros como a noite. Passou as costas da mão na testa retirando o excesso do suor que gotejava. Já eram quase seis da tarde e o sol ainda queimava a pele. Era verão e fazia muito calor. Poderia estar a essa hora num escritório com ar condicionado, trajando um belo terno, com a secretária a servir-lhe uma xícara de café. Mas será que isso seria vida para ele? Não negava as vezes refletir sobre essas questões, como é normal a qualquer ser humano. Mas não encontrava a resposta e por fim desistia de pensar, afinal, a necessidade lhe impusera esse destino, não tivera outra escolha. Para que pensar então, se nada mudaria?
Era um homem inteligente, que tivera um certo estudo, mas perdera o pai cedo e teve que assumir as despesas da casa, não podendo levá-lo adiante. Assim, largou os estudos incompletos e procurou por trabalho, pois tinha que sustentar a mãe e sua irmã mais nova. Moravam numa cidade do interior em condições já bem difíceis, mesmo com seu pai ainda vivo. Como seu pai trabalhava em construções, o caminho mais fácil  foi seguir seus passos, substituindo-o de início numa construção já em andamento na qual ele trabalhava até a ocasião de sua morte. E assim continuou dali para adiante. Tornara-se um bom operário e era constantemente requisitado. Ainda foi a sua sorte, pois era o seu ganha pão e de sua família. Dava para o sustento, nada além disso. Mas sentia orgulho de poder fazer isso pelos seus. Não deixaria que passassem fome ou não tivessem um teto para morar. As obras necessárias na modesta casa, ele mesmo fazia e assim a mantinha em condições habitáveis.
Perdido em seus pensamentos nem percebeu o tempo passar. Já escurecia.
"Bem, por hoje é só"- pensou enquanto via seus companheiros um a um se preparando para ir embora. Mais um dia que se foi ou seria menos um dia? Bom, dá na mesma.- sorriu consigo."
Foi para casa caminhando. Já anoitecia e uma brisa suave percorria-lhe a pele suada, trazendo-lhe um alívio refrescante. Iria para a sua casa e seria recebido com alegria pela sua mãe e irmã, com um bom prato de comida a sua espera, depois de um bom banho gelado. Depois, uma cama limpa para descansar seu corpo fatigado. Do que poderia enfim reclamar?  Tinha muito mais que muitos, não? Tinha uma casa, comida, roupas limpas e não estava só.
Avistou a luz da casa acesa e viu a sombra de sua mãe a porta. Sorriu satisfeito.
O pouco pode ser muito quando se dá valor ao que se tem, ele sabia bem disso.


Ianê Mello



domingo, 11 de setembro de 2011

DE TERNURA REVESTIDO






 Para Érico Veríssimo


Olhai os lírios do campo
em sua infinda alvura
O amor vence o pranto
com palavras de doçura

O tempo passa macio
com o vento a soprar
e no coração vazio
resta tempo pra chorar

A esperança pela justiça
permeia os seus romances
De Ana Terra a Clarissa
em todas as suas nuances

Em sua máquina de escrever
desfilam seus personagens
com a ternura desse ser
que só merece homenagens



Ianê Mello

OLHOS DE GATO


Na janela pares de olhos
verdes olhos a espiar
curiosos olhos
olhos de gato
observadores natos
bichanos  de estimação
ariscos por natureza
ao mesmo tempo dóceis
independentes com certeza
lavam-se com a própria língua
banho de gato
água só pra beber
enrodilham-se nas pernas
quando querem carinho
mostram as garras
quando querem ficar sozinhos
nada fazem para agradar
admiráveis felinos


Ianê Mello

sábado, 10 de setembro de 2011

PARCA VIDA



cama de charco
estagnada e suja
intempérie impiedosa
desnudo corpo
sem adorno
faz frio
privado de vida
parca luz o envolve
pele e ossos
quase inumano
jogado
largado
da vida extirpado
abortado
treme só
em espasmos convulsos
vida besta
de que valerá?


Ianê Mello



Crédito de imagem: Pintura de Edward Steichen

FLOR CARMESIN



Limito-me ao vazio do abandono
flor murcha de pétalas carmesins
ao chão caída
um dia, fulgurante e bela
apreciada por olhos diversos
desejada em seu perfume
num jardim cuidado com esmero
a vida tem seu tempo
é breve o instante do esplendor
chega o outono
as flores não florescem mais.

Ianê Mello

SIMPLES SINAIS




Caminhava pela beira da praia a passos lentos, sentindo a brisa fresca , a maresia e o calor do sol a queimar meu rosto. Olhava as pessoas ao meu redor e suas diferenças marcantes. Pessoa sorrindo e brincando, acompanhados de amigos, pessoas enamorados com seu par, pessoas pensativas e sós, pessoas contemplativas.... As pessoas são sempre um mistério, um universo particular. Elas me interessam como parte de vida que flui em seu caminhar. Eu costumo observá-las por puro prazer de observar-lhes as diferenças e ficar a imaginar o que carregam no peito, afora a aparência que demonstram. É, talvez devesse ter sido psicóloga para melhor estudar o comportamento humano, que sempre me fascina. Não sou, mas estudá-los é um hábito que não me abandona. 
O dia está lindo, um sol gostoso e a brisa fresca. Eu estou só, fora de mim, a observar os seres que passam em meu caminho. Sair de mim às vezes me faz bem e se torna até uma necessidade. Resolvo caminhar pela areia etá o mar. Límpido e claramente azul. Um convite à um mergulho. A água gelada provoca arrepios em meu corpo, mas aos poucos me acostumo e me deixo boiar sobre elas. Que sensação gostosa de liberdade. Deixar-se levar pela correnteza, o corpo totalmente entregue aos braços do mar. Olho para o céu azul e claro. Pássaros a voar, planadores e aviões de propaganda. 
Algo perturba minha tranquilidade. Respingos fortes de água provocados por alguém mais estabanado. Fico de pé na areia e observo. Um feio bonito, como dizia minha mãe, tipo Jean Paul Belmondo. Não entendia bem quando ela dizia isso, mas agora já entendo. Na verdade o que há é um charme qualquer, uma aura, que torna esse homem atrativo. Fique a observar suas longas braçadas nadando para o mais fundo do mar. Bom nadador, coisa que nunca fui. 
Decidi voltar para a areia e tomar um pouco de sol. Nem sei a quanto tempo estava ali. Acho até que adormeci. Sinto de repente a areia quente bem no meu rosto.
- Caramba, mas não olha pra onde anda, não? - falei tirando a areia do rosto e ao levantar a vista quem eu vi? Exatamente ele. O estabanado.
- Poxa, me desculpe, eu sou mesmo um desastrado, falou com convicção.
- Ah, vai, tudo bem. Deixa prá lá.
- Mais uma vez, me perdoe... disse se encaminhando para sua cadeira, que estava próxima a minha, por sinal.
De lá, de sua cadeira, percebo seu olhar em mim. Começo a pensar se não foi proposital  aquela areia em meu rosto. Jeito estranho de aproximação, mas afimal, cada um faz o que pode...
Sua cadeira próxima a minha, a areia, seu olhar... podem ser meros fatos coincidentes. Mas conscidências existem? Eu acho que não. A vida nos revela surpresas  através de sinais que às vezes nem percebemos ...



Ianê Mello







Crédito de ima gem: Pintura de Silvio Zatti

SEGUINDO EM FRENTE





Ela sente que perdeu o rumo. Não sabe mais que direção tomar. São tantos os caminhos. Tantas as escolhas. O caminho a percorrer é longo e difícil. Há momentos em que percebe que deveria começar tudo de novo, reaprender a andar. Reaprender a falar. Como uma criança, começar do zero.
Construiu castelos de areia, que o vento derrubou. Sonhos que não pode sustentar. Ela era imaturo demais, somhadora demais, pouco sabia da vida e se achava dona do mundo. O tombo foi garnde quando percebeu que não era nada, que nada tinha, nem sequer liberdade de ser ela mesma.
Hoje, reavalia sua vida e vê quanto tempo perdido! 
Hoje sabe o quanto tem que aprender ainda. Vê cada momento na vida como um sinal e aprende a cada instante. Vive intensamente cada dia como se fosse único, como se fosse o último. Dia a dia, um dia de cada vez, enfrenta seus próprios medos e inseguranças. Luta para libertar-se desse estado de espírito que a encaminha ao sacrifício de um avida inútil e sem sentido.

Dobrando-se sobre seus joelhos e reconhecendo sua fragilidade, sua limitação humana, ela roga:

- Deus, não me abandone. Dê-me um sinal para prosseguir,coragem em meu caminhar. Eu corro através do fogo, enfrento os perigos em meu caminho. Eu sinto a efemeridade da vida, a fugacidade dos momentos. Sei que meu tempo aqui nessa terra é limitado, mas não quero morrer, quero manter-me viva. Mas em certos momentos me faltam forças...

Ela se entrega as lágrimas sentidas de um ser que se sabe limitado. De um ser que sofre por ser simplesmente humano. O choro é uma catarse para suas dores. Esvaziada, seca suas lágrimas coma as costas das mãos, se levanta. sente-se melhor agora. pronta para recomeçar.
Um momento de cada vez, um dia após o outro, ela busca sobreviver.

Afinal, não é assim a vida?



Ianê Mello




quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A TRAVESSIA




Delírio...
sangue a fervilhar
nas veias
quente
olhos esbugalhados
pelo medo deformados
pele num arrepio
fria
na boca
o grito mudo
de espanto
o corpo paralisado
enrijecido
congelado
limiar do medo
iminência da morte
previsão
presciência
fugacidade das horas
transitoriedade da vida
a travessia é inevitável.

Ianê Mello


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O BARQUEIRO

 

Cai o corpo de leve
e se faz o instante breve
que a pura mão alcança
Do peito se ergue a lança
que perfura a carne e sangra
E da ferida aberta e exposta
pulsa o vermelho-sangue
tingindo a branca veste
E sentindo dor lancinante
tomado por súbito espanto
fecha os olhos e da vida
- despede-se... sem pranto


Ianê Nello



FIM DO ATO






Cai o pano
Apagam-se as luzes
Chegou a hora
Hora de soltar amarras,
de encerrar o ato,
de cortar os laços...
laços de ternura
Desvencilhar-se do abraço...
dos braços daquele
que nos abraçou

A morte é a chegada
É a hora da partida
É a solidão no peito de quem parte
É a saudade nos olhos de quem fica

Ianê Mello





Crédito de imagem: Salvador Dali