segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

SONO PERDIDO




Como dizer bom dia
se em mim não amanheceu
no rosto amarrotado
nos olhos que teimam em não se abrir
nos músculos doloridos do meu corpo
na cama quente que abriga meu suor
no quarto abafado, escuro e vazio

mas o toque insistente do relógio
me desperta para  o novo dia
posso imaginar o sol por detrás das cortinas
posso imaginar as pessoas a caminhar pelas ruas
posso ouvir o canto dos pássaros em alvoroço
os carros a buzinar em sua frenética correria
mas em mim não amanheceu

mantenho fechados meus olhos
estico o braço até a mesinha
desligo o despertador
viro para o lado
viro para o outro
ajeito o travesseiro
deito de costas
deito de lado
deito de bruços
...
nada...

o sono se foi

maldito despertador!!!


Ianê Mello

(29.12.12)

*
Fotografia do Google de autoria desconhecida.

domingo, 30 de dezembro de 2012

SE VOCÊ ME QUER




se você me quer desejo
te quero um pouco mais
nesse lampejo no olhar
faísca de terno amor

se você me quer  ternura
te quero um pouco mais
quando sua voz me desperta
e não me sinto mais só

se você me quer menina
te quero um pouco mais
quando em seu peito me aninho
e meus olhos adormecem

se você me quer mulher
te quero um pouco mais
quando em seu corpo me encontro
e me desmancho em prazeres

se você me quer simplesmente
te quero sempre
e sempre um pouco mais
se você me quer...


Ianê Mello
(03.12.12)

*
Pintura de Santiago Carbonel

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

CONTRA A SOLIDÃO NÃO HÁ REMÉDIO



numa estante cheia de livros
(que nunca li)
vidas que não são minhas
esperam ser desvendadas

mas o olhar pousa cansado
nem delas consigo me apoderar
cansa viver só de ilusões

no peito uma dor doída ainda resta
esse sentir esvaziado de sonhos

esse dia após dia sem surpresas
esse desejo de algo
mas de quê?

essa vontade de fugir
mas para onde?

numa casa cheia de pertences
roupas se amontoam no armário
pedem para respirar outros ares

mas a vontade de vesti-las inexiste
mesmo quando ficar é insuportável

mesmo quando o ar já me falta
entre quatro paredes eu me fecho


Ianê Mello


(25.12.12)

*


Fotografia de Amber Ortolano



terça-feira, 18 de dezembro de 2012

INEVITÁVEL AMANHECER





nas ruas o brilho da lua
e o silêncio de um céu
sem nuvens

estrelas a cintilar
faróis acesos
na imensidão que se alonga

noite que transborda
desejos e ardis
paixões febris

em cada esquina
uma promessa
satisfação imediata

solidão entristecida
em cada rosto que busca
em mãos que tateiam
no escuro sem resposta

a madrugada des(a)ponta
sólida na dor
no coração que pulsa
na voz que cala

não há remédio
a ferida entreaberta sangra
enquanto o dia
lentamente
...
amanhece


Ianê Mello

(18.12.12)

*

Pintura de Omar Ortiz “La noche estrellada “



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

MULHERES QUE ME HABITAM







Dentro de mim
tantas mulheres
se abrigam
se escondem
se agitam

pintam a boca
se enfeitam
se vestem
e se despem

Dentro de mim
tantas mulheres
se buscam
se calam
se ferem


pintam o cabelo
dobram os joelhos
se acomodam
e se divertem

Dentro de mim
tantas mulheres
mas meus olhos no espelho
só uma conseguem vislumbrar


Ianê Mello



*

Pintura de Francine Van Hove


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

NOSTÁLGICO ENTARDECER






chão de pastilhas brancas já amarelecidas pelo tempo de uso assim como o mármore encardido da pia e os azulejos pintados das paredes dessa cozinha antiga onde ainda se usava butijão de gás num fogão de seis bocas que certamente alimentava muitas bocas onde provavelmente vivia uma família numerosa e todos se sentavam à mesa central de madeira para o almoço caprichado de domingo  e também para o lanche regado a pães acompanhados de bolo de laranja e biscoitos de nata feitos em casa  que exalavam por todos os cômodos um cheirinho de padaria acompanhados de um delicioso café com leite e todos conversavam alegremente  sobre coisas triviais entre uma mordida e outra de pão com manteiga e geléia de morango também feita em casa e as crianças corriam ao redor da mesa fazendo aquela algazarra e depois quando a tarde caía era certo um cochilo na rede estendida na varanda ou numa espreguiçadeira embalado pelo canto dos pássaros nas árvores do quintal que exalava um delicioso perfume de alfazemas onde o sol se despedia do dia com seus tímidos raios


Ianê Mello

(09.12.12)

*

Pintura de autoria desconhecida retirada do google

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

LA CUCARACHA





parecia ser apenas uma barata como qualquer barata que se vê por  aí mas na verdade era uma barata distinta e especial que parecia mexer as anteninhas quando algo lhe agradava e além disso parecia gostar de música se é que é possível uma barata gostar de música pois quando ouvia o som das cordas do meu bandolim  se aproximava  e eu que não tinha medo de baratas continuava a tocar enquanto ela mexia suas anteninhas suavemente como se fossem minúsculas perninhas de uma bailarina a dançar e não parava enquanto eu tocasse o que começou a me fazer vaidoso por ter uma platéia cativa tão atenta e participativa logo na fila do gargarejo o que me fez acostumar-me a toda manhã esperar pela minha companheira de audição e para ela tocar por horas até acontecer um fato inusitado  quando comecei a tocar certa manhã e nada dela aparecer  o que  me deixou consternado e a partir desse dia tal fato se repetiu o que me fez temer pela ausência daquela que fez meus dias se tornarem mais felizes  e que tanto contribuía para o aperfeiçoamento de minha arte e assim sendo resolvi dar uma busca pela casa para ver se a encontrava quando meus olhos subitamente pousaram em seu corpinho estendido no chão do banheiro de empregada com as patinhas para cima e eu  não querendo acreditar  me abaixei e soprei de levinho para ver se ela esboçava alguma reação mas suas anteninhas bailarinas permaneceram  imóveis o que me fez compreender que havia perdido minha companheira e em sua homenagem peguei meu bandolim e para seu corpo inerte toquei uma triste canção de despedida 


Ianê Mello


(09.12.12)

*
Pintura de Pablo Picasso


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

INDELÉVEL




Sombras
sombras projetadas

Vultos embaciados
de corpos

Estáticos...
em movimentos leves

Efemeridades
do imperdoável tempo

Retratos de instantes
breves e fugazes


Captações momentâneas
num flash


no tempo que se esvai
sem deixar marcas


Ianê Mello

(01.11.12)

*
Fotografias de Amber Ortolano

*

Assista ao vídeo-poema:

http://ianemellomeusvideopoemas.blogspot.com.br/2013/01/indelevel.html

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

REPRISE





naquela manhã quente de verão suas mãos estavam frias e todo seu corpo parecia desvanecer  numa palidez inesperada enquanto ouvia sem acreditar o homem que amava dizer-lhe adeus em palavras lançadas como pontas de faca afiada em seu peito matando dentro dela qualquer fio de esperança nesse amor ao qual se entregou sem medidas coisa que jurara para si mesma não mais fazer  pois já conhecia o fim e sabia o quanto era amargo como fel  e assim estava ele à sua frente agora sendo forçada a assistir o mesmo filme que já conhecia passar frente a seus olhos  na mesma forma forçadamente amena de dizer adeus como dizem todos aqueles  que se julgam superiores de alguma maneira por haverem superado um sentimento que antes existia e por acharem que se bastam a si mesmos  podendo do outro dispor como fosse um chinelo velho que não tem mais serventia sem pensar ao menos que esse mesmo objeto tanto tempo lhe serviu e aqueceu os pés em tempos frios e nem mesmo o olhar incrédulo do outro pode dissuadi-lo do término e nem mesmo a lágrima que disfarçadamente escorre do canto dos olhos o comove como se uma capa de frieza o envolvesse e nada mais possa tocar seu coração que um dia se mostrou tão amoroso e seus lábios que agora proferem palavras duras e cortantes nem mais parecem os mesmo lábios de onde só saíam palavras murmuradas docemente e promessas de amor eterno 


Ianê Mello


(05.12.12)


*

Pintura de Santiago Carbonell

domingo, 9 de dezembro de 2012

CONFISSÕES




No rosto o peso dos dias
desejos desenfreados
paixões resguardadas
silêncios adormecidos

No rosto o reflexo da espera
o tempo em finas linhas
devastadas ilusões
inconfessáveis temores

No rosto as horas contritas
amanheceres insones
solidões acompanhadas
em sórdidas esperanças

No rosto o reflexo mudo
vida em desapego tácito
da eternidade vivida
no apelo sem resposta


Ianê Mello

(01.12.12)

*
Fotografia de Amber Ortolano

sábado, 8 de dezembro de 2012

NA COMPANHIA DOS VERSOS




Sabe-se da solidão
o quanto dói
espaço sem medidas
de ausências
noites de insônia
dias cinzas
no peito vazio

Sabe-se da solidão
o quanto oprime
lembranças esquecidas
em sótãos escuros
pequenos tesouros
a sete chaves
num velho baú guardados

Sabe-se da solidão
o quanto entristece
nos versos do poeta
acalentados pela saudade
no conforto das palavras
um breve encontro
ilusória companhia


Ianê Mello

(29.11.12)

*

Pintura de Francine Van Hove

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

PUREZA DA INFÂNCIA



Menina dança
aprende a vida
com o corpo
a balançar-se
de cá pra lá
de lá pra cá
testa seus limites
extrapola
experimenta-se
estica braços e pernas
desajeitadamente
se ajeita
de um novo jeito
flexível que é
bambu ao vento

Menina brinca
pula corda
desata nós
faz caretas
saci perereia
numa perna só
sobe em árvores
pendura-se em galhos
rola na grama
bicho solto
espicha o corpo
saculeja as idéias
em sua cabeça de vento

O tempo passa normalmente
coisa que bem sabe fazer
a menina não sente
a menina não vê
Afinal, a maravilha da vida
está no aqui e agora
A maravilha da vida
é simplesmente viver


Ianê Mello

(30.11.12)

*
Pintura de Paul Klee

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

HIPNOSE NO DIVÃ




Transe hipnótico
olhos vidrados
no pêndulo que oscila
de lá pra cá
de cá pra lá
na voz que sussurra o comando

Sobre a retina dos olhos
lembranças passeiam
passado longínquo
encarnações vividas

No divã o abandono
a entregue plácida
por breves momentos
toda uma vida
nas mãos que embalam o sonho


Ianê Mello

(28.11.12)

*
Fotografia de autoria desconhecida



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

DE VOLTA AO SONHO





hoje acordei de um sonho estranho desses que nos causam vertigem e a sensação de que estamos caindo da cama e ao mesmo tempo a vontade de continuar a sonhar para saber o desfecho pois nos resta a sensação de algo inacabado como na vida parecem inacabados certos fatos que nos ocorrem mas sem dúvida na vida real não estaria sendo perseguida por um lobo feroz e voraz como numa estória de chapeuzinho vermelho perdida na floresta indo para a casa da vovó mas talvez por algum bandido ou assassino que muito não diferiria de um lobo embora suas intenções possam ser outras que não comer-me se bem que num sentido figurado poderia até ser essa sua intenção afinal não faltam indivíduos com taras diversas nessa cidade grande assim como a floresta e suas imensas  árvores poderiam simbolizar os enormes edifícios que nos rodeiam  no centro da cidade e quem sabe um desejo secreto de voltar a ser criança num mundo para mim desconhecido e cheio de surpresas seja representado nesse sonho bizarro onde vejo essa vontade realizar-se o que me leva a divertidamente pensar que se pegar novamente no sono talvez o sonho possa continuar de onde parou e com um sorriso nos lábios fecho meus olhos a espera do lobo


Ianê Mello

(04.12.12)

*
Arte: Amanda Grey

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

VIDRO E CORTE




um sabor de morte e de coisa finda no desalento em cacos de vidro espalhados por todos os lados a vida que se esvai em poças de vermelho sangue a tingir o branco azulejo como marco derradeiro de despedida do débil e frágil corpo jogado na frieza desse chão impuro de um banheiro público onde tudo são escombros e dejetos na louça trincada e encardida do vaso sanitário ainda cheirando a urina e da pia entupida onde tantas mãos foram lavadas em dias e noites desumanos daqueles que vivem na descrença de uma vida melhor abandonados que estão a própria sorte e desgraça sem ter ao que recorrer e ninguém com quem contar para ao menos dividir sua miséria de existir e estar pela vida mendigando migalhas de miseráveis de espírito sem compaixão e sem coragem de continuar põem fim a sua parca existência de forma trágica como esse corpo que aqui jaz


Ianê Mello

(03.12.12)

*

Arte: colagem sem título de Zeigarnik

MERA ILUSÃO




solidão que apavora
quando finda a tarde
melancolia e saudade

o presente já é passado
as águas do oceano fluem
vem e vão...
em vagas

nos ponteiros do relógio
o tempo avança...
tudo passa
tudo muda
nada permanece

só o homem
em sua busca
de fazer de um instante
a eternidade perpétua



Ianê Mello

(30.11.12)

*
Pintura de Edvard Munch

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

SOMBRAS DA INOCENCIA




era tudo tão estranho à luz difusa do velho abajur projetando sombras na parede como fantasmas a vigiar os corpos nus no leito revirado enquanto a noite ardia em tremores súbitos e o véu do encanto se dissipava em nós na aranha que tecia a teia lúgubre das horas enfeitiçada pelo tique-taque do relógio na parede pálida de espanto enquanto fora a chuva fina batia contra as vidraças e o vento cortante embalava as roseiras no jardim esvoaçando suas delicadas pétalas carmesim e suas hastes balançavam-se num confuso balé cuja música era o sibilar do vento que também se fazia ouvir no farfalhar das folhas das árvores em que pássaros pousados em seus galhos protegiam-se da chuva nessa noite em que tudo era silêncio ocultado nas sombras e até mesmo os bichos encolhiam-se em suas tocas  e a lua sequer se atrevia a desvendar-se entre as escuras nuvens que acobertavam malvadamente o brilho das estrelas como fosse esse ato impiedosamente condenado como profano e dele só restasse o ocultamento tornando-o inexistente aos olhos humanos que por assim serem o julgariam condenável e impróprio sendo portanto indigno e vergonhoso de ser propagado devendo permanecer nas sombras da noite como um fantasma indesejado de revelar-se mesmo que a pureza do amor que envolvia os dois amantes fosse o único propósito desse imponderável encontro tão inocente para ambos que permaneciam completamente alheios eternamente perdidos num sonho impossível tendo a noite como única testemunha muda desse amoroso desenlace


Ianê Mello

(02.12.12)

*
arte: colagem sem título de Lydia Roberts

sábado, 1 de dezembro de 2012

REFLEXÕES SOBRE O HUMANO II




preciso muito caos interior para poder parir uma estrela que dança."

                                                                                           Friedrich Nietzsche


É preciso lançar-se no escuro

É preciso atirar-se ao precipício

É preciso entregar-se ao desconhecido

É preciso mergulhar no vazio de si mesmo

É preciso não temer a solidão

É preciso ouvir sua voz interior

É preciso navegar em mares bravios

É preciso coragem de ousar mudar

É preciso enfrentar seus próprios fantasmas

É preciso conhecer sua própria sombra

É preciso querer enxergar além dos limites

É preciso domar os próprios medos

É preciso revelar segredos inconfessáveis

É preciso sacudir as sólidas estruturas

É preciso desnudar-se frente ao espelho

É preciso revelar-se além do óbvio

É preciso desconstruir-se por inteiro

Assim, gerado a partir do caos interior

renascerá em sua completude

esse ser que em você se esconde

esse ser que verdadeiramente és  


Ianê Mello

(30.11.12)



Pintura: Joan Miró - Constelação - A Estrela da Manhã