sexta-feira, 31 de maio de 2013

RAPTO NOTURNO





Era perto da meia-noite. Lembro como se fosse hoje. Eu tinha 7 anos e era véspera do meu aniversário. A campainha de casa tocou e ninguém podia supor quem seria tão tarde da noite. Era meu pai... parecia meio transtornado, não bêbado, pois ele não bebia, mas bastante nervoso. Invadiu a sala, apesar dos protestos de minha mãe, assustada e aturdida. Foi até o meu quarto. Eu dormia inocentemente, como só as crianças dormem, e ao sentir seus braços a me levantarem da cama, despertei assustada. O que se passava? O que ele estaria pretendendo fazer? Ele disse, percebendo minha apreensão ” fique tranquila, vim te buscar” e enrolando-me no lençol, carregou-me nos braços, passando apressadamente  pela minha mãe, que parecia estar em estado de choque, tomada pela surpresa. Independentemente de seus protestos, dirigiu-se para a porta, descendo a escadaria com um certo cuidado, afinal me carregava em seus braços, e nem era um homem forte, muito menos jovem. Parecia estar imbuído de uma vontade inabalável, nada o faria desistir de sua decisão: tirar-me da casa de minha mãe, aonde até então eu vivia desde a separação dos dois. Estava tão absorto em seu objetivo que sequer percebeu que eu chorava baixinho. Acho que naquele momento me senti raptada pelo meu próprio pai. Sensação por deveras estranha. Minha mãe, finalmente se recuperou do choque e começou a gritar, o que despertou parte da vizinhança que começou a se empoleirar nas janelas de seus apartamentos para ver o que acontecia. Mas ninguém nada fez. E ele seguiu comigo em seus braços, até chegarmos ao táxi que nos esperava. Eu não disse uma palavra sequer... não conseguia articulá-las, estava tomada de uma sensação muito estranha e indecifrável. O primeiro amor de uma menina é seu pai e eu o amava, como era de se esperar. Mas me sentia confusa, pois achava o que ele tinha feito errado e não conseguia compreender o que o levou à uma atitude tão drástica. Claro que compreendia o quanto ele devia sentir a minha falta, bem como eu sentia a dele, mas tudo poderia ter sido conversado entre nós e com o consentimento de minha mãe, uma vez  expresso meu desejo, eu teria ido morar com ele . Assim, acabariam as noites sacrificadas em que ele ia visitar-me depois de um longo e cansativo dia de trabalho. Nas noites em que sentado à escada ao meu lado brincávamos de escola. Eu, a professora, ele, o aluno atento. Sim, eu era capaz de compreender o quanto isso era difícil para ele, um homem que já tinha uma certa idade, embora gozasse de perfeita saúde e tivesse muita disposição.  Estava no banco detrás do táxi e pude ver parcialmente seu rosto. Estava lívido. Apesar de tudo, tive pena dele nesse instante, pois talvez essa fosse a forma que ele encontrara de demonstrar o quanto me amava. O amor pode ter formas estranhas de se expressar e isso a vida começara a me ensinar naquela noite.


Ianê Mello

(01.02.13)


*
Arte de Ben Newton


terça-feira, 28 de maio de 2013

APANHADOR DE SONHOS




A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.


Eduardo Galeano




Tudo passa
A tristeza contida
A vida oprimida
Comprimida 
em desenganos
em desafetos

Mas tudo passa
O s amores perdidos
Os carinhos sentidos
As lágrimas derramadas

Continue o caminho
Pés cansados
Corpo suado
Alma inquieta
Mas prossiga...
Não pare!

Caminhar é preciso
às pessoas de bom senso
Viver não é preciso
É impreciso
É tortuoso
É inconstante
É um sobe e desce sem fim

Mas o que vale, meu amigo
É a esperança que brilha
É a beleza do encontro
E a persistência de ser
Hoje e sempre
O apanhador de sonhos.


Ianê Mello



(28.05.13)

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Pintura  de Ferando Centeno.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

ESCREVER É PRECISO



No branco do papel a espera muda
num acordo tácito e cerimonioso
Palavras suspensas no vento
em malabarismos de um poeta ensandecido
Escrever versos sem demora é preciso
livrar-se da agonia do silêncio que apavora
Escrever para libertar palavras inexatas
ou quem sabe prenhas de um novo sentido
Escrever para desafiar a métrica
numa lógica enlouquecida que desperta
numa falta de sentido que reclama
que em versos desconexos se derramem
sentires de dolorosa intensidade
mas o peso das palavras adverte
na falta de tato com o verbo
na ausência do tudo que preenche
por toda uma vida
ou num breve instante
Enquanto a mão repousa placidamente
e em sua própria inércia adormece



Ianê Mello

(23.05.13)

*
Arte de autoria desconhecida 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

AMOR QUE SE REVELA



De amargo fel  tornou-se doce
O amor transmutado em puro mel
E amantes ungidos como se fosse
A magia do encanto em carrossel

Lampejos de criança enaltecidos
Em brincadeiras de terno amor
Corpos em descanso adormecidos
Em regadas noites de frêmito e torpor

Poderiam imaginar-se assim vencidos
Entregues ao abandono do prazer
Na alma de afeto enaltecidos
No corpo a delícia do viver

Em promessas sem receios sussurradas
Elegias ao afeto desbravado
De distâncias e temores apartadas
Vislumbres de um horizonte tão sonhado



Ianê Mello

(22.05.13)


*
Arte: Alex Almany

terça-feira, 21 de maio de 2013

ALUMBRAMENTO




Assim meio sem graça
Me quedo em súplicas
Vertigens de uma alma inquieta
Protejo meus olhos as furtivas lágrimas
Na inquietude do olhar que brilha
E já se enamora do que em beleza resplandece
Busco no ardor do momento eterno
Banhar-me em azuis de firmamento
Em luzes tênuas na retina vislumbro
O que de certo um dia escapou de súbito
E no lampejo do que alumia me perco
Em encantamentos de pura alegria
Em refugos de paixão abandonada
Aos braços amados me entrego em prece
Adornando a vida em sonhos rememorados
Salpicados ternamente pela espera


Ianê Mello


(21.05.13)


*
Pintura de Eduardo Argüelles


domingo, 5 de maio de 2013

APENAS OUÇA





Não, não tires de mim
palavras não ditas
Queres adivinhar o que penso?
Deixes que eu te diga
as palavras certas
e apures teus ouvidos para ouvi-las
Não tires conclusões apressadas
não deturpes em tua mente
minhas palavras
Elas são minhas pois que delas
Apoderei-me ao pronunciá-las
Se não queres me ouvir,
se não te calas por dentro,
como podes compreender
meus sentimentos?
Como podes julgar
minhas intenções?
Teu coração de pedra embrutecido
é meu desalento
fazes-me chorar por dentro
lágrimas em sangue vertidas
pois apunhala-me com tua ira
com tuas palavras nefastas
com o falso orgulho com que
te defendes
Tires tua armadura fora
e sejas gente
Me encares de frente
e enfrentes o medo
Enquanto ainda é tempo
Enquanto ainda há tempo
De tentarmos ser felizes.


Ianê Mello
(23.04.13)

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Pintura de Klint.