quarta-feira, 31 de outubro de 2012

(DES)UMANIDADE



Cidade de Pedra
asfalto e pó
concretude inabalável
dos altos dos prédios
nas ruas esgotos fedem
calçadas de lixo humano
sobre papelões e jornais
corpos desabrigados
dormem anestesiados
embebidos em álcool
transeuntes passam
apressados e distraídos
já não há surpresa
nessa selva de concreto
a vida segue seu ritmo
não há tempo para sentir
a realidade é o asfalto quente
os carros parados nos sinais
o menino a limpar para-brisas
a busca pela sobrevivência
não há lugar para o sonho
os dias correm iguais
e quando a noite avança
se faz a escuridão nas ruas
no silêncio o choro da criança
é o único som que se faz ouvir
lamento triste que embala a noite
na cidade de asfalto e pó.


Ianê Mello

(30.10.12)

*

 Pintura de autoria desconhecida

Música Incidental: Lady Jane- Olivia Byington



terça-feira, 30 de outubro de 2012

FUGACIDADE




Tomado pelo espanto
súbito desenlace
a mesma mão que afaga
fere a carne trêmula
jorra o sangue
da ferida aberta
em poças vivas
no azulejo branco
no corpo quase inerte
já não há encanto
a vida se esvai
num sussurro breve
e tudo o que era luz
perde seu brilho
nos olhos opacos
a menina dorme
um sono profundo
e sem retorno


Ianê Mello

(29.10.12)

*
Pintura de John Hummel


MENINA NA JANELA





As fachadas das casas
com seus telhados
sombreiam as ruas
nesse morno entardecer

Em cada janela entreaberta
uma tímida nesga de sol
atravessa o cômodo
trazendo um pouco de vida

Cada casa guarda um segredo
um canto obscuro
um jardim escondido
um baú de sonhos

Numa das janelas, uma menina,
cabelos vermelhos de fogo
no branco rosto um sorriso
um olhar que tudo vê

As fachadas das casas
as janelas entreabertas
os secretos segredos
a menina a sorrir...

Mais um dia se passa
nesse morno entardecer
no olhar que tudo vê
um baú de sonhos


Ianê Mello

(28.10.12)

*
Pintura de Anat Ronen

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

INTERLÚDIO





No espaço entre o sim e o não
o talvez se faz possível
e ressurge a vontade
de um querer sem limites

No espaço entre o silêncio e a palavra
o pensamento se torna real
e da lacuna se faz a dúvida
esvaziando-se as certezas

No espaço entre o amor e o desejo
a paixão supera os limites
o corpo se desfaz em luxúria
e a razão perde o sentido

No espaço entre o sim e o não
entre o silêncio e a palavra
entre o amor e o desejo
existimos nós dois e nada mais


Ianê Mello


(26.10.12)

*
Pintura de Marc Chagal

domingo, 28 de outubro de 2012

ENQUANTO ROLA UM BLUES





ao som
ao sul
ao azul
um blues
toca
arranha
a pele
tensa 
o corpo
umedece
na veste
nos olhos
o brilho
azulejando
azuis 
o amor 
já partiu
na dança
que não dançamos
em melancólicas notas
que desmancham-se
em estrelas


Ianê Mello


(26.10.12)

Não me pergunte a hora- Nei Lisboa



sábado, 27 de outubro de 2012

MÁSCARAS QUE CAEM




Artefatos de artifício
pele que escamoteia
jogo de esconde-esconde
lobo em pele de cordeiro
máscaras que encobrem rostos
tudo é maya, tudo é ilusão
a imagem criada
a linguagem inventada
puros disfarces do real
personagens encenados
num palco montado
somente para a platéia
artistas treinados
saboreiam aplausos
e a dor se esconde
mas ao final do espetáculo
cai o pano, acaba a cena
a platéia se retira
e no chão espalhadas
as máscaras se tornam inúteis


Ianê Mello

(24.10.12)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

NA ESTAÇÃO





Fim de tarde. Todos apressados saem de seus trabalhos. Caminham pelas ruas ligeiramente. A estação de metrô fervilha. Pessoas são como formigas amontoadas a espera do próximo vagão. Há que se ficar esperto para conseguir entrar. E eis que ele chega: já lotado. As pessoas se empurram e se comprimem buscando um espaço que não existe. Parece impossível acreditar que ainda cabe mais um corpo nesse espaço. Mas cabe, tem que caber! O sinal apita. A porta fecha, forçando a entrada ainda mais. Colados no vidro rostos e corpos de expressão cansada mais parecem peixes num aquário. Dentro, uns comprimem-se contra os outros, apertam-se, espremem-se, até quase formarem uma massa compacta, onde não se distinguem mais os corpos, onde um começa e o outro termina. Os cheiros, os rostos, os corpos se misturam, confundem-se, mesclam-se. Uma mulher sente falta de ar. Começa a passar mal e grita. Mas o que fazer? O jeito é esperar a próxima estação. Quando ela chega, a mulher tenta em vão sair...impossível. A massa humana já a espera na estação empurra ela de volta. Nisso, em movimento contrário, um homem de idade é empurrado para fora do vagão. Ele resmunga e tenta entrar de novo, também em vão. Tudo o que resta é cada qual conformar-se, manter a calma e a paciência, respirar bem fundo, fechar os olhos e esperar chegar ao seu destino. Não há nada que se queira mais nessa hora do que chegar em casa, tomar um bom banho, comer um bom prato de comida, assistindo um pouco de televisão. Depois, uma boa noite de sono, para recuperar as energias para enfrentar um novo dia e, com muita sorte, uma volta para casa mais tranquila. Mas do que podemos reclamar afinal, temos uma casa, comida e todo o conforto de um lar, enquanto tantas pessoas nem ao menos isso tem, não é mesmo?


Ianê Mello

(24.10.12)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O DIA DE CADA UM




A tarde já caía. Era outono. Folhas secas formavam um tapete amarelado por todo o parque, cobrindo o que antes era um verdejante gramado. As crianças gostavam de pisá-las, sorrindo felizes ao ouvir o barulho que faziam. Como pode uma criança divertir-se com tão pouco! Sentado num velho banco de madeira, um senhor de meia idade lia um livro totalmente absorto, parecendo que nada ao seu redor poderia lhe chamar a atenção. Dentro de seu carrinho de passeio, um bebê observava maravilhado tudo a sua volta. Com olhinhos de curiosidade ele olhava as copas das árvores, os pássaros, as crianças, movendo sua cabecinha prá cá e prá lá. Afinal, tudo para ele era uma grande novidade! Sua babá, ao contrário, empurrava o carrinho enfastiada, doida para voltar para casa. Ainda tinha tanto o que fazer, tantas obrigações a esperavam. E assim mais um dia findava. Para uns, com muitas alegrias e surpresas. Para outros, infelizmente, apenas mais um dia, como qualquer outro dia.


Ianê Mello

(24.10.12)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

POEMA FECUNDO




O que cabe no poema?

A fome de pão
O amor em vão
O sim e o não
Uma nova invenção?

O que cabe no poema?


A caristia
A sangria
A cama vazia
A vida vadia?

O que cabe no poema?


O temor
O rancor
O torpor
O ardor?

O que cabe no poema?


O verso
O transverso
O reverso
O diverso?


O que cabe no poema?

O diário
O salário
O escapulário
O salafrário?

O que cabe no poema?


O sentido
O perdido
O contido
O pervertido?

Mas afinal, o que cabe no poema?

O tudo, o nada
O simples, o complexo
O silêncio, a palavra
O real, o imaginário,
no poema tudo cabe.

O poema
é útero fecundo
é mãe parideira
é o verbo e o verso
é a arma e a flor

O poema arde
O poema invade
O poema sangra
O poema é vivo
e pulsa...


Ianê Mello
(24.10.12)


*
Pintura de Frida Kahlo 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

CERTAS CANÇÕES




Ouço uma voz que entoa canções
enquanto a nostalgia me envolve
numa carícia aveludada em notas sutis
em pureza d’alma que transborda emoções

Voz que o vento traz de longe, muito longe
em vagas e doces lembranças que ressuscitam
como folhas amarelecidas sob meus pés descalços
que ao mais leve pisar farfalham docemente

Certas canções me deixam assim
trazem em si uma saudade dolorida
no despertar das paixões adormecidas
já maturadas pelo tempo que se foi

Nos amores que passaram sem aviso
e ao cair da tarde, no outono da vida,
revolvem suaves lembranças na alma
da partida que se fez em silêncio


Ianê Mello


Inspirado na canção “Uma voz no vento”- Leila Pinheiro
http://www.youtube.com/watch?v=wilwYraG6A0




*
Pintura de Johnny Palacios Hidalgo

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

CHUVA QUE CAI



A chuva cai mansa
em gotas cristalinas
tilintando em cores
amarelo, azul, vermelho
dos guarda-chuvas abertos
sobre as cabeças dos transeuntes

Nas ruas brilham poças d’água
gotas límpidas como carícias
escorrem nas janelas das casas
nos vidros dos carros
nas folhas das árvores
nas penas dos pássaros

No rosto da moça gotículas suaves
confundem-se com lágrimas
em seu triste semblante
Em suas costas nuas escorrem
provocando um leve arrepio

Assim a chuva vem
em meio a tarde nublada
E com ela lava o pranto
em dias de sol resguardado


Ianê Mello

(09.10.12)
Pintura de Melanie Florio



terça-feira, 9 de outubro de 2012

PERFEITA COMUNHÃO





Uma obra de arte
a alma do artista revela
seja numa aquarela
em cores e matizes
em formas e contornos
seja num poema
em palavras combinadas
em versos que se alinham
Momento de profunda comunhão
quando ao toque de duas almas
artista e apreciador se encontram
Numa fusão de pura magia
a arte se torna plena e se eterniza
O artista se desnuda para aquele
que intensamente o contempla
e assim a arte se manifesta.


Ianê Mello


*
Pintura de Marga Céndon



ALMA INQUIETA





Quem vai salvar minha alma agora
nos caminhos tortuosos e sombrios
nos becos escuros e sem saída
nos passos perdidos a esmo?

Minha alma clama liberdade
chama pela fé que acalma o espírito
Mas como suportar esse torpor
essa coisa quente correndo nas veias?

Mas como suportar esse batimento acelerado
essa nuvens que cobrem minha retina
esse tremor nas mãos nuas e frias
essa destemperada aflição que me preenche?

Como suportar esse vazio de vida
essa busca de algo inexistente
esse querer que não se define
essa prisão que oprime?

Quem vai salvar minha alma agora
se desde que me entendo no mundo
essa solidão no peito me devora
e esse grito preso não quer se calar?

Onde encontrar um abrigo farto
um afeto que seja puro e exato
na medida certa para o meu desejo
em braços que acolham sem medidas?

Quem vai salvar minha alma agora
enquanto o silêncio se resguarda
em palavras não pronunciadas e omissas
enquanto o corpo pede mais espaço?

No chão de cimento e pedras
calejo meus pés sem descanso
Na ternura não encontro meu remanso
nem nas noites que se erguem como sombras

Meu corpo adormece no cansaço das horas
ao sono me entrego sem resistência
Tomara este possa acalmar a inquietude
em meu coração de sal e sangue


Ianê Mello

*Desenho de ERIKA KUHN


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

DE IMPROVISO




E como preciso
de um improviso preciso
que me tome de assalto
assim sem quê nem porquê
sem espera
de repente
como ventania
espalhando nuvens
voejando folhas secas
despertando sentires

Um improviso preciso
no exato momento
em que nada se espera
e o tudo ganha forma
tingindo a tela nua
de matizes inesperados
de sonhos não moldados
emoldurando desejos

E como preciso
de um improviso preciso
sem eira nem beira
sem aviso prévio
sem anunciação
que me rasgue as vestes
que me turve a visão
que desvende verdades
que derrube as grades
desse tempo-prisão.

Ianê Mello 

* Pintura de Duy Huynh

sábado, 6 de outubro de 2012

TECITURA DE PALAVRAS



As palavras se perderam no vácuo
como se perdem os afetos mal cuidados
como se perdem os amores mal vividos
como se perdem os sonhos abandonados

As palavras se perderam no vácuo
e em seu lugar um vazio tamanho
sentimentos que não encontram expressão
onde o silêncio toma formas assustadoras

Onde estarão as palavras?
Palavras que não se mostram
omissas em sentires obscuros
perdidas em ternuras escondidas

Palavras difusas
Palavras cortantes
Palavras amáveis
Palavras indóceis

Palavras sentidas
Palavras confusas
Palavras vibrantes
Palavras profusas

Aguardo, nas entrelinhas adormecida
a palavra que de súbito me tome
e de mim se aposse com vontade
presa fácil em sua teia de veludo


Ianê Mello

(06.10.12)